Alguém se esqueceu de salvar o capitalismo?

Em todas as épocas há paradoxos ou situações desconfortáveis face ao uso de certas palavras (mesmo sem se perceber bem porquê). Por exemplo, por não usarmos mais vezes a palavra "capitalismo" podemos estar à beira de continuar a fazer mais disparates do que as economias de mercado podem suportar.

Há palavras em desuso, como "proletariado", e outras que se vai aprendendo a usar, como "precariado". Falamos muito de "mercados", inclusive definimos o nosso mundo económico como "economia de mercado", mas falamos pouco de "capitalismo". E isso é um problema, porque quando não falamos, ignoramos. E ignorar leva a que não questionemos e, por consequência, não detectemos as falhas.

Em Portugal, mesmo no período da "Grande Recessão" em que vivemos, dificilmente encontramos quem (à direita ou à esquerda) publicamente se sinta à vontade para numa conversa, formal ou informal, falar sobre o "capitalismo".

No entanto, falamos todos os dias muito sobre "mercados", "bancos", "os mais ricos de Portugal" (sim, no masculino, pois a desigualdade de género impera também na riqueza) e também sobre "salários", "investimentos", "moeda" e menos sobre "trabalhadores", mas ainda assim bastante sobre "sindicatos".

Porquê falar sobre estas palavras todas? Porque pode ser que o nosso pensamento sobre o futuro e sobre a nossa capacidade de construir riqueza e crescimento esteja assente em premissas erradas. Ou seja, e se a solução para o crescimento não passar apenas por tentar ter mais empreendedores ou ter mais cortes?

E se não for possível, com a actual estrutura de distribuição de riqueza, ter mais crescimento que os 1,5% nos países europeus? E nem ter o crédito abundante necessário para investir?

E se o problema estiver na concentração excessiva de riqueza em 1% da nossa população e no exagero salarial entre "quem gere" e "quem tem emprego"? E não apenas nas metas políticas de austeridade e equilíbrio de contas públicas?

Com dúvidas? Sim? Óptimo? Avancemos então e passemos das palavras às letras. Se "r > g", então o empreendedorismo e as políticas de austeridade e equilíbrio de contas públicas podem não servir para grande coisa, pois estamos a tratar sintomas e não as causas dos problemas.

As duas letras e o sinal de maior, "r > g", fazem parte do título da conclusão do livro de Thomas Piketty, recentemente traduzido para inglês pela Harvard University Press e intitulado Capital no Século XXI - o qual lidera actualmente o top de vendas de livros da Amazon.com.

Piketty analisa, ao longo dos últimos séculos, a evolução da riqueza nos EUA, França e outros países europeus concluindo que a principal força de desestabilização das economias de mercado reside no facto de "r" (taxa de retorno do capital investido, isto é, lucros, dividendos, juros e rendas) poder ser quase sempre maior, durante larguíssimos períodos de tempo, do que o "g" (taxa de crescimento económico).

A contradição a que se refere Piketty é que, no actual quadro de funcionamento das economias, o empreendedor inevitavelmente se transforma em gestor de rendas, com cada vez mais domínio face aqueles que não possuem mais do que o seu trabalho. Os ricos mais ricos ficam enquanto todos os outros, que dependem dos seus empregos, lutam para manter o que ganham acima da linha da inflação.

A análise de Piketty demonstra que o capital acumulado se reproduz muito mais rápido do que o rendimento do trabalho. A riqueza acumulada no passado cresce mais rapidamente que os salários e, portanto, o passado devora o futuro.

Após um maior equilíbrio episódico, ocorrido nas três primeiras décadas da segunda metade do século XX, estamos aceleradamente a regressar a uma era de capitalismo patrimonial.

Essa "normalidade" corresponde à situação histórica em que uma muito pequena minoria vive de rendas da riqueza acumulada o que, virtualmente, condiciona também o reinvestimento directo na produção económica.

É verdade que o crescimento pode ser encorajado por investimentos na educação, conhecimento e tecnologias não poluentes, mas nenhuma destas opções vai aumentar as nossas taxas de crescimento para 4 a 5% ao ano por forma a acompanhar a rentabilidade das rendas de capital.

Se a isto tudo juntarmos que, estando os nossos países europeus na fronteira tecnológica actual, não são previsíveis taxas de crescimento económico como as vividas no passado europeu, ou actualmente na China, teremos completo o quadro expectável onde nos iremos movimentar nos próximos anos.

É muito provável que o abandono do uso da palavra "capitalismo" por parte da maioria dos homens e mulheres que fazem política e, também, dos que gerem os mercados financeiros, tenha também contribuído para o estado a que isto tudo chegou (leia-se "isto" o "capitalismo" e por arrasto as nossas sociedades). 

O que fazer então? Talvez política? Se há desejos que deveríamos partilhar para tornar as nossas sociedades, de novo, mais habitáveis e mais equilibradas, eles deveriam passar pela introdução de uma taxa progressiva 0.1% a 0.5% (para impedir apenas a acumulação excessiva e não a acumulação positiva) das grandes fortunas dos 1% mais ricos entre nós.

É preciso salvar o capitalismo de si mesmo, ou se preferirmos, da acumulação excessiva do 1% de capitalistas que partilha connosco (os 99% de capitalistas populares) esta nossa economia de mercado.

As sociedades demoram tempo a mudar, mas é preferível mudar do que perecer e se os Governos vivem 4 anos, as pessoas vivem em média 70, por isso podemos começar já, nem que seja para ver os resultados só dentro de 25 anos.

O autor é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris

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