A urgência da equidade fiscal na Europa

Como é possível aceitar que, entre países membros da União Europeia (UE) – o que significa países unidos por um dever de cooperação leal –, seja não só aceitável como legal uma concorrência fiscal desenfreada? Esta situação tem dois tipos de consequências importantes: em primeiro lugar, desvia receitas fiscais dos países onde deveriam ser cobradas para os países que oferecem vantagens fiscais; em segundo lugar, e em consequência, a carga fiscal, que deveria ser repartida, acaba por incidir sobre as pequenas empresas e os cidadãos que não conseguem utilizar estes expedientes.

Se este fenómeno é hoje uma peça da globalização, ele é difícil de aceitar dentro de uma UE onde se pressupõe que as condições de concorrência entre empresas sejam garantidas e onde a chamada “governação económica” impõe regras cada vez mais exigentes à política orçamental dos Estados-membros (EM), incluindo as troikas. Apesar disso, diversos EM especializaram-se na concepção dos mais variados esquemas para atrair para o seu território os capitais gerados por empresas operando em países de dentro e fora da UE, com pouca ou nenhuma ligação com a economia real local, obtendo receitas fiscais fabulosas com taxas efetivas de imposto extremamente baixas.

Muito variados e criativos, mas sobretudo muito complexos e opacos, estes esquemas correspondem tipicamente a contratos individuais entre empresas (sobretudo grandes multinacionais) e as administrações fiscais desses Estados para onde deslocalizam a sua sede ou uma filial (frequentemente simbólica), o bastante para aí canalizarem lucros realizados noutras zonas.

Os mecanismos utilizados no âmbito destes acordos prévios (os chamados tax rulings) para, no concreto, funcionarem como veículos de transferência de lucros, são múltiplos e altamente imaginativos, desde supostos pagamentos de juros de empréstimos (que nunca existiram), dividendos ou royalties alegadamente feitos entre empresas do mesmo grupo e que ou não são de todo tributados ou o são a taxas irrisórias.

Grandes empresas mundiais – incluindo algumas com uma imagem pública de grande responsabilidade corporativa, como Ikea, Apple, Starbucks, Amazon, Pepsi – especializaram-se nesta engenharia fiscal que lhes permite, na prática, decidir que impostos pagam em que países, minimizando até taxas próximas de zero o imposto que efetivamente pagam pelos lucros que realizam.

De entre os países especialistas nestas operações, sobressai naturalmente o Luxemburgo, transformado, sobretudo com base neste tipo de práticas, na segunda praça financeira mundial, a seguir aos Estados Unidos (EUA): com uma população de pouco mais de 500 mil pessoas, o Luxemburgo conta hoje com 3700 mil milhões de dólares de activos geridos pelos seus bancos e outras operadoras financeiras; segundo a organização não-governamental americana Citizens for Tax Justice, 170 das 500 maiores empresas dos EUA têm filiais no Luxemburgo e por este país transitaram, em 2012 e segundo o Bureau of Economic Analysis, lucros de 95 mil milhões de dólares. Os impostos pagos efetivamente sobre estes lucros equivalem a uma taxa de apenas 1,1%, apesar de a taxa oficial ser de 29%. Atente-se ainda num indicador ilustrativo do caráter ficcional das operações destas empresas: três endereços no Luxemburgo são a morada fiscal de mais de 4300 empresas, sendo, na realidade, simples caixas de correio por onde transitam os capitais.

Mas o Luxemburgo – hoje sob holofotes devido às recentes revelações do Consórcio Internacional de Jornalistas (mais conhecidas por LuxLeaks) que puseram a nu a dimensão deste negócio – está longe de ser um caso isolado. Estratégias de tipo semelhante são desenvolvidas pela Holanda, por exemplo, fazendo até de Portugal, como é sabido, uma das vítimas do seu dumping fiscal: 17 das 20 maiores empresas nacionais deslocaram a sede para a Holanda e aí pagam grande parte dos seus impostos.

O que poderá surpreender é que, dentro da UE, esta concorrência desenfreada seja oficialmente legal; é que, ao contrário do que geralmente se pensa, a política fiscal na UE, apesar de todos os aprofundamentos do processo de integração até à moeda única, manteve-se largamente uma competência nacional (com excepção da base de tributação do IVA e de alguns impostos específicos sobre o consumo). Significa isto que, em matéria de impostos sobre as empresas – IRC –, não há harmonização, nem modo de evitar este tipo de práticas agressivas, frequentemente destruidoras das finanças públicas dos EM mais frágeis.

Na prática, qualquer iniciativa de harmonização na área da fiscalidade exige, por conseguinte, a aprovação unânime no Conselho de Ministros da UE; claro que a Comissão Europeia (CE), tem o poder de apresentar propostas legislativas, mas o risco óbvio de as ver bloqueadas por qualquer dos EM que se sinta lesado tem-na remetido – pelo menos até há bem pouco – a uma posição de cautela que roça a tibieza.

O mesmo não se passa com o Parlamento Europeu (PE), e sobretudo com o seu Grupo Socialista, que tem vindo a tentar por todos os meios introduzir este tema, que considera escandaloso, na agenda política. Aproveitando o impulso gerado pelos Luxleaks, o PE criou uma comissão especial para investigar e tornar públicos os detalhes destes acordos fiscais (na qual sou co-relatora), esperando que a pressão política da opinião pública faça mover os EM. De facto, e numa altura em que está a ser pedido aos cidadãos e às pequenas e médias empresas um esforço brutal em termos fiscais, pensar que a taxa paga pelas maiores empresas mundiais é de cerca de 1% torna-se intolerável. Inaceitável politicamente é ainda que sejam os ministros das finanças de alguns dos países cujas contas públicas se alimentam destes expedientes algumas das vozes mais duras nas exigências de austeridade aos outros.

Entretanto, muito por via da pressão pública, a CE já começou a agir, tendo apresentado uma primeira proposta legislativa em fevereiro (prevendo troca de informações automática e obrigatória entre EM sobre vantagens concedidas às empresas). Aguarda-se um segundo pacote para junho, que se espera venha a incluir algumas das exigências do PE, como o reporte dos lucros das empresas país a país. Há, assim, um enorme trabalho ainda por fazer, mas este é um momento único para estimular o aprofundamento da UE em termos que acabem com práticas que, a coberto dos interesses de alguns, garantem a legalidade de práticas moralmente injustas e politicamente insuportáveis.

Eurodeputada, coordenadora dos membros do Grupo dos Socialistas e Democratas Europeus (S&D) na Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários do Parlamento Europeu 

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