“A sociedade portuguesa caracteriza-se pela insuficiência do Estado social”

Entrevista a Lina Coelho, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

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Lina Coelho coordenou equipa que entrevistou mil casais com filhos Diogo Baptista

Ao longo de dois anos, no âmbito do projecto de investigação “Finanças conjugais em tempos de crise”, uma equipa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (UC) coordenada por Lina Coelho inquiriu mil casais portugueses com filhos e fez 42 entrevistas em profundidade. A subdirectora da Faculdade de Economia da UC refere que, “em Portugal, ainda não havia estudos sobre esta matéria”, portanto era importante lançar uma luz sobre perceções, escolhas e práticas financeiras das famílias entre 2010 e 2014, fazendo “uma espécie de retrato-robot dos casais com filhos em Portugal”.

De que forma é que a crise modificou a gestão financeira das famílias?
No que diz respeito ao tipo de arranjo que os casais têm, não houve grandes alterações no modo como o casal se organiza. Pensamos que isso se deve ao facto a gestão financeira da família ser um aspecto estruturante da realidade familiar, que as pessoas resistem a alterar. Só o fazem quando a necessidade é mesmo imperiosa, por exemplo, quando há uma situação de desemprego e um dos cônjuges deixa de ter rendimento. Os efeitos da crise, no sentido de perda de rendimento, não levaram a alterações no modo de gerir. Depois, o modo de gestão, num sentido mais amplo das práticas de aquisição de bens, obviamente sofreu alterações.

Quais foram as principais?
A esmagadora maioria dos casais sofreu cortes de rendimento. Isso impôs um recentramento nas necessidades básicas quotidianas. As pessoas foram levadas a ter que abdicar da satisfação de necessidades como férias, programas de lazer fora de casa. Um número elevadíssimo de pessoas disse-nos que deixou de ir ao restaurante ou reduziu muito significativamente as idas ao restaurante. Tudo aquilo que se afigurava como mais ou menos dispensável sofreu grandes ajustamentos.

As despesas que sofreram mais cortes relaccionam-se principalmente com a qualidade de vida. No entanto, a redução nas ajudas a pessoas dependentes também é significativa (44%).

É uma redução muito grande. Não somos capazes de dizer o que é que isso significou. Há-de ter a ver desde com aquela pessoa que tirou o pai ou a mãe do lar para cuidar dele em casa até uma pessoa que mudou para um lar mais barato ou que passou a gastar menos com a qualidade dos medicamentos que toma. Ainda assim, é significativo.

O estudo indica que, apesar de Portugal ser um dos países da União Europeia “em que mais famílias reportam dificuldades”, estas não se traduzem em “níveis equivalentes de incumprimento”. Porque é que isto acontece?
Isso significa algo muito característico da sociedade portuguesa, a que Pedro Hespanha e Boaventura Sousa Santos chamaram 'sociedade providência'. A sociedade portuguesa caracteriza-se pela insuficiência do Estado social, das respostas que este dá às famílias. Isto deixa as pessoas muito vulneráveis aos riscos de desemprego, de doença, de velhice. Nós manifestamos práticas generalizadas de solidariedade, nomeadamente de matriz intergeracional, o que faz com que haja almofadas de segurança para as pessoas que lhes permitem preservar aquilo que elas consideram essencial, mais do que se tivessem desprotegidas sem essa rede social de apoio. A habitação, que é o grande motivo para o endividamento familiar, é um domínio fundamental da vida das famílias e elas fazem um grande esforço para salvaguardar esse domínio. Só quando não aguentam mais e não têm mais soluções [é que entram em incumprimento]. Pagam as prestações da casa, água, luz, telefone e a educação dos filhos. O estudo evidencia um grande esforço para manter um mínimo que assegura a viabilidade da família enquanto tal.

Em que é que se materializa esse apoio?
Estas ajudas informais de apoio manifestam-se nos domínios mais variados. São pais que adquirem casa e carro para os filhos; são pais que, não podendo fazer isso, dão A entrada para a casa ou pagam a prestação; são pais e mães que dão as refeições do fim-de-semana; que vão buscar as crianças à escola. Por exemplo, que quando o filho ou filha cai no desemprego lhe oferecem as refeições quotidianas ou pagam o vestuário das crianças ou compram material escolar. Uma panóplia quase infindável de ajudas e que, por vezes, quase passa despercebida aos próprios receptores. Quando perguntámos aos inquiridos se eles recebiam ajudas económicas, a resposta só foi positiva em 29% dos casos. Achámos um número relativamente reduzido. Contudo, quando passámos para as entrevistas, foi muito curioso verificar que não há quase ninguém que não receba ajudas significativas. Mas como são em espécie, não são em dinheiro, as pessoas não têm a noção do valor económico de ajudas como produtos agrícolas ou ir levar os filhos à escola. Este tipo de soluções tem um valor económico para a família, as pessoas tendem a assumir que não há ali ajuda económica. No entanto ela existe.

O que quer dizer que há uma geração que suporta a outra.
Absolutamente. E que nos levanta muitas interrogações sobre este modelo social e o futuro. No fundo isto não é reprodutível. A actual geração de idosos está a sustentar o padrão de vida dos filhos e dos netos, mas estes já não vão conseguir reproduzir o modelo em relação aos seus próprios filhos e netos, porque a tendência instalada é para a redução dos montantes de reforma. Como os percursos de vida e de carreira são muito mais fragmentados, precários, dificilmente as pessoas terão uma carreira tão estruturada e que dê o mesmo tipo de benefício de reforma que a geração actual usufrui. Esta realidade levanta questões sobre o contrato social em vigor em Portugal. Encontrámos vários casos em que é manifesta a tutela, a quase menoridade dos casais relativamente à geração acima. É como se se mantivesse a dependência que caracteriza uma criança, mas que na vida adulta não se espera encontrar. Inevitavelmente as pessoas vivem infelizes com a situação de escassez com que foram confrontadas, sem prever.

Isso deve-se ao enfraquecimento de apoios garantidos pelo Estado?
Seguramente. Nitidamente, face aos cortes de rendimento e à impossibilidade de manter os padrões de despesa, essas redes, que já existiam, foram reforçadas. No fundo é a reacção da sociedade às insuficiências do Estado. É claramente um mecanismo de reacção da sociedade providência às insuficiências de mercado, que não compensa os riscos sociais de forma satisfatória.

Há ainda margem de manobra para que essas redes sejas reforçadas, caso haja necessidade?
A crise portuguesa começou sobretudo em 2010, portanto temos quatro longos anos de crise profunda. A noção que nos é transmitida é que essa margem de manobra tende a esgotar-se. As pessoas dizem-nos que, em muitos dos casos, esgotaram as suas poupanças, em muitos casos também foram buscar as poupanças da geração anterior, que fez de fiadora do empréstimo. A percepção que nos fica é que as almofadas que existiam previamente, as reservas de capacidade de reacção à austeridade, foram-se esgotando.

Disse que a almofada de apoio social de foi esgotando. O que é que isso significa em termos futuros?
A sociedade portuguesa não terá margem para manter a mesma vitalidade nos apoios que teve. É uma questão de lógica. Em muitos casos, a margem foi-se esgotando. Nota-se esta inquietação acrescida com a incapacidade para responder a situações imprevistas, porque as poupanças já se esgotaram. Embora encontremos situações que são verdadeiros milagres. Avós que recebem reformas baixíssimas e que, ainda assim, são o pilar de sustentação da geração mais nova, muitas vezes à custa de práticas de consumo irrisório. São as tradições de poupança e contenção, de quase não consumo. Para algumas pessoas da geração mais velha a crise foi a realidade da sua vida toda, nomeadamente nos meios rurais, pessoas que recebem reformas de 200 e poucos euros. Essas pessoas conseguem muitas vezes retirar uma parte daquilo que, em muitos casos, nem sequer é uma reforma, é uma pensão de sobrevivência, para pagar o vestuário dos filhos, os livros, o telemóvel…

Quais são as perpectivas de saída dessa situação?
Nas entrevistas perguntámos qual era a perspectiva para daqui a cinco anos e ninguém nos disse que previa uma melhoria significativa. Alguns são mais radicais que outros. Houve pessoas que nos disseram que estavam à espera de que o filho acabasse o curso para emigrarem todos e houve quem nos dissesse, comos os funcionários públicos, 'eu já só espero que nos reponham os subsídios, isso já nos vai dar uma folga'.

Uma questão abordada no projecto foram as relações de género. Houve alguma transformação acentuada durante o período analisado?
Como parecem ter sido reactivadas as redes de solidariedade informal, as grandes protagonistas dessa rede são mulheres. Estas redes de solidariedade passam muito por trocas em espécie, trabalho não remunerado. O trabalho não remunerado, em todos os países, é sobretudo desempenhado pelas mulheres. Por exemplo, 40% das pessoas diz-nos que passou a levar uma marmita com o almoço para o trabalho. Quem é que habitualmente cozinha nas famílias portuguesas? São as mulheres. Aquilo que antes era algo que não impunha trabalho às mulheres em causa, passou a ter que ser assegurado.

Referiu a exposição ao crédito à habitação e das prestações que as famílias têm que pagar. Isso explica o discurso político do 'vivemos acima das nossas possibilidades'?
As famílias viram-se subitamente confrontadas com uma alteração dos pressupostos em que assentava a sua vida económica e financeira. Elas foram incentivadas a endividar-se pelo contexto económico. A partir de um momento em que a Europa criou o euro, as taxas de juro diminuíram drasticamente e, portanto, o crédito tornou-se muito barato. O sistema financeiro praticou uma política agressiva de venda de crédito. Toda a gente quer viver melhor, toda a gente gosta de ter uma habitação digna. Fizeram contas à vida, acharam que, com os níveis de rendimento que tinham, poderiam assumir aquele tipo de encargo. O discurso de que vivemos acima das possibilidades ganha todo o sentido quando olhamos para a escala macro da economia – Portugal endividou-se face ao exterior, temos uma balança comercial deficitária, etc. Quando olhamos para o nível micro, o que podemos dizer é que as escolhas foram feitas num quadro absolutamente racional. As pessoas encontraram-se depois, subitamente, face a uma alteração radical dos pressupostos em que estavam a funcionar. Não podem ser culpadas por isso, obviamente.

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