A Santa Casa na roleta

A Suíça não é propriamente um país troglodita, atrasado e bacoco. Pelo contrário. Ora, em 2012, a Suíça introduziu na Constituição uma norma que fixa que os lucros do jogo "sejam integralmente aplicados a fins de utilidade pública, nomeadamente nos domínios cultural, social e desportivo".

A Constituição federal de 1999 já tinha disposições disciplinadoras, completadas por preceitos a afectar receitas do jogo ao seguro social de velhice, sobrevivência e invalidez. E, perante a ofensiva dos poderosos interesses do jogo internacional, os suíços não foram de modas: por referendo, em 11 de Março de 2012, tornaram mais assertiva a protecção do bem comum. A maioria foi clara: 87,1% dos votantes aprovaram a nova norma da Constituição, proposta pela Iniciativa Popular "Por jogos a dinheiro ao serviço do bem comum", que entrou logo em vigor. Ponto final.

Isto é o que se passa num país democrático decente. Mas, numa questão bem importante e sensível, nem peço tanto. Basta que mantenhamos e aprofundemos – em vez de destruirmos de uma penada – a política social de jogos que temos em Portugal desde há décadas, sempre com bons resultados.

Fui, há dias, surpreendido pela Proposta de Lei n.º 238/XII, em que, a propósito da legalização do jogo online, o Governo apresenta profundíssima modificação do regime longamente consolidado. Não estou de acordo. Estivesse eu na oposição e desancaria violentamente um texto que coroa, infelizmente, os piores sinais inquietantes que vinham já dos Governos Sócrates. Pertencendo ao arco do Governo, tenho que ser mais comedido, sem embargo de manifestar e explicar a minha discordância.

Conheço bem, desde há anos, a fortíssima pressão, dita “liberal”, dos interesses que se movimentam e prosperam no universo do jogo online. Alguns correspondem ao pior que possamos imaginar – e, quando digo o pior, quero mesmo dizer o pior. Combati-a no Parlamento Europeu, sempre com sucesso, e como presidente do CDS. Buscam portas franqueadas num quadro europeu de política do jogo em que os regimes liberais, que lhes são favoráveis, eram raras excepções. Procuram manipular os tratados europeus e a liberalização dos serviços contra os regimes de exclusivo público ou outros modos de condicionamento e protecção do interesse social. Têm averbado, porém, muitas derrotas, pois o seu argumentário assenta em falácias: é falso que o Direito Comunitário esteja do seu lado – e que estivesse... Participei, com eurodeputados de outros países, em duas fragorosas derrotas que sofreram. E têm perdido causas no Tribunal Europeu. Por duas vezes perderam contra o Estado português; mas, é claro que, se, agora, a proposta de lei se puser contra Portugal e ao lado desses interesses, irão ganhar – porque nós meteremos o golo na própria baliza. Com a mão.

Sei que o ataque continuou. Sempre servidos por muito, muito dinheiro, têm conseguido avanços noutros países. Conseguiram aliados nos serviços da Comissão Europeia por vias que intrigam. A pressão em Portugal nunca abrandou, com alguns escritórios por conta. Tinha já assistido a tibiezas deploráveis nos Governos Sócrates; e sabia das pressões ditas “liberais” dentro do PSD, nomeadamente por mãos que hoje moram na Goldman Sachs e interesses ligados ao “futebol”. Mas o quadro bem ancorado e sólido da nossa política pública neste domínio e o êxito que sempre teve quando posta à prova faziam-me acreditar que não conseguiriam levar a sua avante. A legislação evoluiria, mas no quadro social bem experimentado do país. Surpreendeu-me – e desgostou-me – ver, agora, também o nome do CDS envolvido naquele novelo e enredo.

Não reputo politicamente legítima esta mudança. Partidos, como PSD e CDS, que sempre desenvolveram uma política de jogo com forte responsabilidade social, não podem mudá-la do dia para a noite assim como quem muda de camisa. Não é mudar de camisa, é mudar de corpo – trata-se de uma política estrutural e estruturante. Uma mudança desta envergadura e com impacto tão profundo (negativo) não pode ser feita sem, ao menos, um debate prévio, largo, sério e informado, no interior dos partidos. Os suíços fizeram um referendo. Nós queremos passar por isto como cão por vinha vindimada. Não pode ser.

O CDS teve dois provedores da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que titula o exclusivo dos jogos sociais e polariza a aplicação do seu produto ao bem comum: Pedro de Vasconcelos e Maria José Nogueira Pinto. O CDS sempre defendeu essa política; e os seus provedores sempre a aplicaram e valorizaram, com distinção. Há 10 anos, no último mandato CDS, a introdução do Euromilhões permitiu-nos lançar novas linhas de apoio a idosos e doentes, nomeadamente nas áreas tão candentes dos cuidados continuados e cuidados paliativos. O PS, entretanto, já tinha mudado isso; mas o essencial mantém-se. Seria deplorável que, em vez de repor e reforçar a boa linha social, viéssemos, agora, comprometer, imediatamente e a prazo, esta âncora tão importante do Estado social e fragilizar áreas absolutamente carentes.

Além disso, não podemos facilitar a vida a interesses obscuros, altamente corruptores, invertendo uma política de combate à fraude e ao crime. Nem podemos franquear o caminho a novos modos de adicção e dependência que atingem duramente os consumidores mais vulneráveis, nomeadamente menores. Não é um bom caminho, por muitos impostos que o vício pudesse render.

Hoje, os jogos explorados pela Santa Casa proporcionam perto de 700 milhões de euros anuais de receita pública, quase integralmente usada a financiar políticas sociais em diversos ministérios, com destaque para segurança social e saúde, além de desporto, cultura, educação e segurança. Com o regime proposto e a alteração do quadro da oferta, centenas destes milhões serão paulatinamente apropriados por privados, lesando as políticas sociais que servem. Em nome de quê? E, a prazo, todas as cautelas que a proposta procura ainda salvaguardar serão derrubadas pela Comissão e os tribunais europeus, já que a incoerência do regime quanto às razões de ordem pública deixará sem sustentabilidade jurídica a posição do Estado português. Todos os que acompanham este dossiê sabem que é assim – e não tenho a mais pequena dúvida de que os escritórios que apoiam a ofensiva dos interesses do jogo têm a lição bem estudada. Como substituiremos os recursos alienados? Seria violento rombo. Como explicar tão grave decadência do interesse público? Por que motivo desalinharemos das melhores práticas europeias, como é a nossa e da Suécia, Finlândia e Alemanha, por exemplo? Não pode ser.

Deputado do CDS-PP

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