A quadratura do círculo

Se continuarmos, com a mesma cegueira, a olhar para o défice e a dívida como o pai e a mãe do nosso futuro, Portugal cairá num declínio já em curso e com custos insuportáveis.

Nos anos oitenta do século XX, aproveitando a onda que os choques petrolíferos tinham provocado nas economias ocidentais, Milton Friedman lançava em Chicago a sua defesa do Estado mínimo. As direitas aproveitaram-lhe o catecismo para apoiar políticas que privilegiaram os mercados financeiros em detrimento dos direitos sociais e da economia real.

Cresceu assim a moda do “pensamento único”, baseado nas teorias neoliberais, que teve uma influência decisiva na construção do euro e nos critérios de Maastricht (1991), que vieram consagrar o pecado original da moeda única: a ambiguidade entre os objectivos monetaristas, assumidos como prioritários, com prazos e sanções para quem não cumprisse, e a “coesão social”, proclamada mas relegada para as calendas, sem qualquer meta bem definida.

A globalização financeira e a crise de 2008 agravaram as desigualdades a uma escala nunca antes conhecida. O desemprego e a instabilidade social instalaram-se para durar. Em Portugal, a crise de 2008 e as políticas voluntaristas com que o Governo da altura lhes quis fazer frente abalaram a solidez das nossas finanças públicas. A especulação alimentada pelas agências de rating e os erros cometidos fizeram o resto, conduzindo-nos à intervenção externa que levou ao memorando e à vinda da troika para Portugal.

Mas não se tiraram lições do passado. O dogma europeu mantém-se ancorado na visão neoliberal, imposta aos países do euro através do Tratado Orçamental, que hoje divide profundamente as várias esquerdas constituindo porventura a maior barreira a qualquer hipótese de entendimento para um Governo de coligação à esquerda.  

Se me permitem a simplificação, tentarei esquematizar a grande diferença entre as propostas neoliberais, comuns à generalidade das direitas, e as propostas de inspiração keynesiana, ou neo-keynesiana, de que as esquerdas se costumam reclamar. Consideremos quatro vértices fundamentais para medir a “saúde” de uma economia:

Graficamente, as diferenças de fundo entre as duas posições ficariam assinaladas neste esquema do seguinte modo:

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É evidente que, como todos os esquemas, esta forma de ler as diferenças é muito redutora, mas onde eu quero chegar é à questão que me interessa: será possível a quadratura do círculo, ou seja, considerar uma estratégia que estimule o crescimento e o emprego sem pôr em risco a saúde orçamental? Ou teremos sempre de sacrificar um dos lados desta combinação?

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Continuando a simplificar, diria que muitos dos discursos que ouvimos do lado esquerdo parecem querer ignorar os vectores do défice e da dívida. Ou através da saída “ordenada” do euro, por forma a permitir ao país recuperar a soberania monetária e fixar os limites do défice orçamental onde muito bem entender; ou através da chamada “reestruturação” da dívida, incluindo incumprimento, mesmo que parcial, e reescalonamento. Pelo contrário, dos apóstolos do pensamento único à direita (e não só), o que ouvimos é sempre a mesma ameaça: não há salvação fora do euro e do Tratado Orçamental.

Julgo que para António Costa a melhor estratégia, a que de facto melhor defenderia os interesses nacionais, seria a que tivesse sempre em conta os quatro vértices do esquema, mas corrigisse desde já o excesso de prioridade conferido pelo actual Governo aos vértices inferiores. Foi aliás essa a leitura que fiz do chamado “cenário macroeconómico” apresentado pelos economistas convidados pelo secretário-geral do PS. Não é uma rotura radical com o euro e com o Tratado Orçamental, mas também não é uma obediência militante aos dogmas monetaristas. Propõe-se um maior ritmo no crescimento e na criação de emprego, mesmo sacrificando as metas do défice e da dívida, admitindo-se que só assim será possível inverter a trajectória, estimular a economia, melhorar o acesso aos direitos sociais e ganhar margem para atingir, mais tarde, os restantes objectivos. Pode não ser o caminho ideal, nem sequer o mais fácil — mas é seguramente um caminho diferente do que vem sendo seguido.

Não é sério dizer-se, à esquerda do PS, que afinal Costa quer mais do mesmo, desvalorizando a diferença de prioridades. À direita, também não é séria a ameaça do regresso de Sócrates. António Costa já deu muitas provas de que não é igual a Sócrates. O próprio método que está a seguir é diferente e é inovador: oferecendo ao escrutínio público, com tempo, as bases do que virão a ser as suas propostas e apelando à participação pública na sua discussão.

Não há dúvida de que há uma opção a fazer. O PS terá de tornar bem clara, antes das eleições, qual é a sua. Seria bastante útil para o debate democrático que à esquerda do PS se explicassem melhor as consequências das roturas que se defendem e que caminho deveria ser seguido por um Governo de esquerda. A experiência do Syriza, que continua a debater-se com a ortodoxia de Bruxelas e dos credores, aconselha naturalmente alguma prudência e sobretudo um dever de verdade perante os eleitores.

Estou convencida de que o debate eleitoral terá de se centrar nestas várias leituras das prioridades que cada um defende e no caminho mais viável para lá chegar. Pela minha parte, penso que não devemos desistir da “quadratura do círculo”, pois acredito que só contando, ao mesmo tempo, com os quatro vértices acima esquematizados poderemos alcançar uma estratégia financeiramente sustentável e socialmente mais justa. Se todas as portas se fecharem e se continuarmos, com a mesma cegueira, a olhar para o défice e a dívida como o pai e a mãe do nosso futuro, Portugal cairá num declínio já em curso e com custos insuportáveis. Mas se prometermos sair do euro sem explicar o que se faria em seguida e o que isso implicaria para Portugal também não vejo como podemos progredir.

É isto que gostaria de ver discutido por todos os sectores políticos, e não as habilidades tontas a que temos assistido, com o PSD a pretender arranjar uma espécie de “Comissão Nacional dos Programas Eleitorais” para o exame prévio de tudo o que as oposições se atrevam a contrapor ao catecismo oficial. Estarão convencidos de que afinal eles é que são os donos disto tudo? 

Arquitecta

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