A Nicarágua vai ser serrada a meio para juntar o Pacífico ao Atlântico

Imagine-se que as retroescavadoras arrancavam de Viana do Castelo e só paravam em Miranda do Douro, cortando a terra ao meio para que as águas do Atlântico chegassem à fronteira com Espanha e com elas navios de grande calado. É isto mesmo que a Nicarágua se prepara para fazer, cumprindo assim um velho sonho de rivalizar com o Panamá no mapa das rotas mundiais de comércio.

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Desde a Guerra Civil de 1980 que não existem tantas atenções a pairar sobre a Nicarágua. Desta vez, ao contrário de rebeldes sandinistas ou indígenas, a maior república da América Central é ocupada por um batalhão de advogados, consultores de negócios americanos, engenheiros australianos, auditores ambientais britânicos e executivos chineses.

Esta agitação é encabeçada por Wang Jin, um empresário chinês que pretende cavar uma enorme via interoceânica entre o Atlântico e o Pacífico através da Nicarágua, que virá competir directamente com o canal do Panamá. A construção de cerca de 286 quilómetros - uma distância superior àquela que vai de Viana do Castelo a Miranda do Douro - está orçamentada em cerca de 40 mil milhões de dólares (cerca de 30 mil milhões de euros).

Depois de o projecto de lei para a construção do canal ter sido aprovado no parlamento nicaraguano, a 13 de Junho de 2013, com 61 votos a favor e 25 contra, o ambiente é de comemoração por parte do Governo - "Este é um dos dias mais importantes do desenvolvimento histórico e económico do país", afirmaram os responsáveis - que prevê um crescimento do PIB de 10% a 15% num curto prazo e a criação de milhões de postos de trabalho nos próximos anos.

Com esta aprovação, a frente Sandinista liderada pelo presidente Daniel Ortega concedeu ao grupo chinês HNKD uma concessão de 50 anos (renovável por mais 50) a troco de uma taxa de 10 milhões de dólares por ano (cerca de sete milhões de euros). No décimo primeiro ano de operacionalização do canal, a Nicarágua terá 10% da empresa, valor que será de 100% no espaço de um século, segundo o The Wall Street Journal.

Para dar início a esta obra multimilionária, o empresário chinês registou em Hong Kong uma unidade empresarial criada exclusivamente para o desenvolvimento do canal – grupo HK Nicaragua Canal Development Investment Co. Limited (HKND Group).

Este projecto não revela ainda uma rota concreta para o traçado do canal e são poucos os detalhes do financiamento ou da viabilidade da obra.Para agilizar os trabalhos, o grupo HKND contratou as consultoras australiana MEC Mining (Mining Engineering Consultants) e a belga SBE (Studiebureau voor Bouwkunde en Expertises) especializadas em obras hidráulicas, engenharia civil e geotecnia. A americana McKinsey também leva a cabo análises de mercado e de crescimento de comércio global que fundamentem economicamente o canal.

Ideia da época colonial
Esta ideia está longe de ser recente, tem as suas raízes na época colonial quando uma importante rota comercial atravessava a Nicarágua entre as costas leste e oeste da América Central. No século XIX, quando ainda não funcionava o canal interoceânico do Panamá, as embarcações provenientes do oceano Atlântico entravam no rio San Juan (rio que nasce no Lago da Nicarágua e desemboca no mar do Caribe) e navegavam até ao lago da Nicarágua. Percorrido o maior lago da América Central, as pessoas, bens e produtos faziam uma travessia em carruagens perto da cidade de Rivas (entre o rio da Nicarágua e o Pacífico) até chegarem ao oceano paralelo.

O actual projecto de construção do canal, três vezes maior que o do Panamá, é um sonho que durante épocas decepcionou todos os que nele acreditaram. Mas Wang Jin mostra-se muito confiante e atento a quaisquer obstáculos que a sua obra possa vir a enfrentar. “Nós não queremos que isto se torne numa piada internacional e não queremos que se transforme num exemplo de investimentos chineses falhados”, declarou numa conferência em Pequim.

A um dos maiores trabalhos de construção do mundo estão associados um oleoduto, dois portos de águas profundas, uma ferrovia transcontinental e dois aeroportos. O conjunto destas obras foi avaliado em cerca de quatro vezes o valor do PIB da Nicarágua (10 mil milhões de dólares, cerca de sete mil milhões de euros).

 “O canal da Nicarágua – Uma oportunidade de crescimento e prosperidade” é o slogan da empresa concessionária e enquadra as envolventes do projecto.

Segundo análises económicas do grupo HKND a taxa de crescimento média actual do comércio vai triplicar até 2020. A consequência directa deste aumento das trocas mundiais será a criação de embarcações de maior dimensão que irão ultrapassar a capacidade dos canais já existentes.

Nova geração de transportes
O alargamento do canal do Panamá, actualmente em curso, significa que as embarcações serão capazes de aumentar a sua carga de 5000 contentores para 13.000. De acordo com o especialista em transportes, Rodney McFadden, o canal da Nicarágua pode suportar mais do que o dobro dos contentores conduzidos através da América Central, ou seja, 30.000 contentores por embarcação. Sublinha que embarcações maiores são mais vantajosas porque transportam mais carga pelo mesmo preço, aumentando assim o fluxo de comércio e beneficiando o ambiente, segundo a Voice of America, o serviço oficial de radiodifusão do governo dos Estados Unidos.

Assim, este canal na Nicarágua pode acomodar uma nova geração de transporte marítimo de minérios, gás e petróleo que de outra forma faria uma rota mais longa pela ponta sul da América Latina.

A obra, com início agendado para o final de 2014, promete duplicar o PIB da Nicarágua e triplicar o emprego já em 2018, segundo Paul Oquist, secretário de políticas públicas da Presidência da República.

A HKND aponta para um prazo de 10 anos até à conclusão da obra e acredita que em 2030 – pouco mais de 16 anos a partir de agora – o volume de comércio terá crescido 240%. Acrescenta também que o valor total de mercadorias que transitam os canais da Nicarágua e do Panamá vão exceder os 1,4 biliões (milhões de milhões) de dólares (cerca de 1,03 biliões de euros), tornando esta uma das mais importantes rotas comerciais do mundo.

A empresa líder do consórcio afirma que a Nicarágua terá benefícios significativos através do aumento do investimento estrangeiro, da construção de infra-estruturas vitais – estradas, aeroportos, portos – do estabelecimento de zonas de comércio livres e do desenvolvimento de zonas de turismo ecológico que vão estimular o crescimento e o investimento, bem como potenciar a criação de milhares de postos de trabalho em diversos sectores de actividade.

O empresário asiático de 40 anos será responsável pelo financiamento do projecto e, numa entrevista à Reuters, disse que a HKND vai liderar um consórcio de parceiros que irão operar de forma “justa, imparcial e aberta” e que pode vir a incluir empresas internacionais. Embora as negociações estejam a decorrer lentamente, a obra será financiada por grandes bancos chineses e outros internacionais ainda desconhecidos.

Um parceiro provável é a empresa China Railway Construction, uma das maiores corporações estatais de infra-estruturas do país, e que recentemente assinou um acordo de cooperação com o grupo Xinwei Telecom Enterprise, também do empresário Wang Jin.

Maior ameaça ambiental no país
Mas acresce outra importante polémica o impacto ambiental de tão monumental obra. A consultora britânica Environmental Resources Management (ERM) foi contratada pela construtora para averiguar as consequências de escavar um canal profundo através do Lago da Nicarágua, o maior lago de água doce da América Latina, e de talhar terras ancestrais indígenas até chegar ao mar do Caribe. E tentar compensar os danos.

“Assumo toda a responsabilidade por qualquer dano ambiental. Disse aos meus funcionários que se se cometer um erro nesta frente vamos ser desonrados nos livros de história da Nicarágua”, declarou Wang Jin, segundo o The Guardian.

Mesmo com o compromisso do empresário, as organizações ambientalistas qualificam a construção do canal como “a maior ameaça ao ambiente na história do país” e “o maior risco para a população que fica desprotegida e incapaz de satisfazer as suas necessidades básicas de água e alimentação”, segundo a KienyKe, uma revista colombiana independente. “É como se houvesse um slogan codificado: ‘O canal a qualquer custo’” disse Manuel Ortega Hegg, vice presidente da Academia de Ciência da Nicarágua, conforme o The Economist.

Víctor Campos, porta-voz do Centro Humboldt de Managua, revelou à KienyKe que fizeram uma denúncia formal e internacional advertindo para as consequências desta construção para o Lago da Nicarágua. Segundo explicou, as rotas que atravessarão a reserva de oito mil quilómetros quadrados põem em risco o abastecimento de água potável para milhões de cidadãos. “Nas encostas e proximidades deste lago vive a maioria da população; limitar o acesso à água potável afectaria todos os territórios próximos” notou.

Além disso, na vasta reserva de água doce habitam mais de 120 espécies ameaçadas - aves, mamíferos, répteis, peixes, anfíbios, molúsculos e crustáceos. Os especialistas citam o exemplo de espécies nativas como o crocodilo Acutus, que ficará sem a sua zona de reprodução, ou do tubarão de água doce. O porta-voz do centro diz que o canal será uma barreira ao livre trânsito da fauna e da troca genética entre espécies, provocando um desequilíbrio na biodiversidade da América Central.

O projecto pode entrar também em terrenos legais instáveis. Gabriel Alvarez, professor de Direito na Universidade Nacional Autónoma da Nicarágua, disse ao The Economist que existem 32 acusações de violação da constituição, um número sem precedente na Nicarágua. O professor destaca a lei que dá à empresa isenção de impostos e direitos sem restrições a uma vasta extensão de terra, regulamento que viola a soberania do país.

Alguns analistas admitem que um canal deste tipo poderia favorecer a China da mesma forma que o Canal do Panamá favoreceu os Estados Unidos no início do século XX, num momento em que a potência asiática tenta consolidar uma agressiva expansão comercial e política ao nível global.

Um panorama económico possível é que o canal possa aumentar a competitividade dos produtos chineses na América devido à diminuição dos custos de transporte. Isso é especialmente atractivo dada a dimensão do mercado consumidor dos EUA.

“Para a China, é um golo geopolítico nos Estados Unidos”, disse à BBC Mundo Heinz Dietrich, investigador da Universidade Autónoma Metropolitana (UAM) do México. “[A China] teria uma acesso estratégico muito melhor à América do Norte, algo que não tem neste momento.”

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