A greve, muito em concreto

O procurador-geral adjunto Alberto Pinto Nogueira escreveu um artigo no PÚBLICO online onde, sem jamais citar o meu nome (um estranho hábito português, que um dia alguém terá a fineza de me explicar), decidiu escrever uma réplica à minha crónica da semana passada sobre as greves à portuguesa. O texto de Pinto Nogueira intitula-se “direitos, sim, mas no abstracto”, e a tese não vai muito além do título: aqui o anónimo “opinion-maker com arrogância” seria a favor da greve como um vago princípio geral, mas, quando se tratava de analisar as greves em concreto, já não achava graça a nenhuma, e portanto a minha única (e maldosa) intenção seria “reduzir tal direito ao papel”.

Permita-me corrigi-lo, caro senhor procurador, mas o meu texto pretendia fazer exactamente o caminho oposto àquele que me atribui: é porque há inúmeros problemas com as greves em concreto que faz sentido repensar a lei que protege esse direito em abstracto, já que não me parece que ela esteja a atingir, de todo em todo, os objectivos para a qual foi criada. A actual lei da greve serve para libertar vapor da cabecinha de trabalhadores zangados, serve para a CGTP manter o Governo sobre pressão permanente, serve para esturrar a paciência a milhões de utentes, serve para banalizar e desprestigiar o próprio direito à greve; mas, no meio de tudo isto, deixou de servir para aquilo que historicamente sempre serviu: defender os direitos dos trabalhadores.

Qualquer pessoa já reparou na diferença avassaladora no número de greves no sector público e no sector privado. Essa diferença costuma ser atribuída à condição do trabalhador do sector privado, que, por ter um vínculo laboral mais frágil, teria mais receio de terríveis vinganças. Só que o direito à greve é o mesmo para os dois sectores, a Constituição protege ambos e ambos sofrem a perda dos seus salários em dias de greve.

A diferença substancial não está aí, mas na relação trabalhador-patrão. No sector privado, a paralisação transforma-se numa perda imediata e directa para o patrão – a produção pára e o dinheiro não entra. No sector público, a paralisação não afecta directamente o patrão – afecta-nos, sim, a nós, cidadãos e utentes, infelizmente uma entidade difusa (falta-nos um sindicato) e sem uma relação directa com quem faz greve. Por outras palavras, a greve no sector privado é uma questão económica. A greve no sector público é uma questão política.

E, por isso, ela é politicamente usada pelas centrais sindicais com claríssimas intenções partidárias, ao mesmo tempo que os seus problemas laborais se eternizam, sem que haja qualquer resolução à vista. A diferença entre uma greve a sério no sector privado e as nossas greves de brincadeirinha no sector público, é que a greve a sério tem um objectivo concreto, enquanto que o objectivo das greves de brincadeirinha é a sua própria perpetuação, procurando muitas vezes atingir meros objectivos políticos com desculpas económicas.

E sabe qual é a cereja em cima do bolo, caro Alberto Pinto Nogueira? É quando a greve passa a dar jeito tanto aos trabalhadores como aos patrões. No caso de sectores profundamente deficitários, como o dos transportes, cada dia de trabalho é um dia a perder dinheiro. E cada dia de greve é um buraco a menos no orçamento. O sindicato fica contente. E o patrão fica feliz. Se isto não é uma perversão bem concreta, então não sei o que o concreto seja.

Jornalista

 
 

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