A “corrida de fundo” de lançar uma empresa de biotecnologia

Nem todas as histórias de empreendedorismo são de empresas de crescimento rápido. Para entrar no mercado das tecnologias de saúde, é preciso muito tempo e dinheiro.

Foto
A Kinematix, de Paulo Santos, está a desenvolver sensores de movimento com aplicações na saúde Nelson Garrido

Quando João Fonseca foi com o filho de três anos ao médico ficou frustrado ao perceber que teria de esperar dias pelos resultados das análises. A consulta, em 2005, fê-lo pensar que aquela demora era um problema que podia ser transformado num negócio. Nove anos e 12 milhões de euros depois, conseguiu pôr um produto no mercado.

A empresa, chamada Biosurfit, foi lançada em 2006. Na altura, João Fonseca, hoje com 42 anos, coordenava um grupo de investigação na Universidade de Lisboa, na área da biofísica. Já tinha no currículo o lançamento falhado de uma empresa, com a qual pretendia desenvolver tecnologia para ecrãs LCD.

A Biosurfit criou uma espécie de laboratório de análises portátil: um aparelho relativamente pequeno, capaz de realizar em minutos algumas das análises ao sangue mais frequentes. O dispositivo pode ser instalado num consultório, em hospitais ou clínicas. “Lancei isto não para ficar rico – embora espere ficar rico –, mas para resolver um problema das pessoas”, diz João Fonseca, enquanto demonstra o funcionamento do aparelho, com uma gota do próprio sangue.

O Spinit tem o formato aproximado de um cubo arredondado, com um ecrã na parte frontal. À primeira vista, faz lembrar um computador da década de 1980. A amostra de sangue é colocada num disco semelhante a um DVD. Para cada tipo de análise, há um disco diferente. João Fonseca não inventou o conceito há muitos aparelhos portáteis no mercado que são capazes de fazer testes ao sangue. O plano da Biosurfit é conseguir agregar um grande número de testes no mesmo dispositivo e fazê-lo de forma barata.

Percurso lento
Criar uma empresa no sector das tecnologias da saúde é muito diferente de lançar uma aplicação ou um serviço online, por exemplo. São precisos investimentos avultados e vários anos até que os produtos passem a fase de desenvolvimento e consigam as autorizações necessárias para serem postos no mercado.

“Este sector é muito mais exigente em termos de investimento e muito mais longo no retorno. São precisas dezenas de milhões de euros”, afirma Carlos Faro, professor na Universidade de Coimbra e fundador do Biocant, um parque de incubação de empresas na área da biotecnologia, com instalações em Cantanhede. Também Nuno Arantes-Oliveira, presidente da Associação Portuguesa de BioIndústrias, observa que este “é um sector com ciclos de desenvolvimento longo porque são baseados em ciência”.

O percurso da Biosurfit está, de facto, a ser muito mais demorado do que o fundador esperava. “Fui completamente utópico. Achava que em quatro anos ia conseguir desenvolver a tecnologia, pôr o produto no mercado e atingir o break-even [o ponto a partir do qual o negócio pode ser rentável]”, diz João Fonseca. Afinal, o projecto “é uma corrida de fundo”.

Por ora, dois discos já obtiveram autorização para serem usados na Europa e estão em fase de comercialização. Outros dois deverão ser lançados nos próximos 12 meses. São fabricados no centro de Lisboa, nas instalações da Biosurfit, que emprega 63 pessoas.

“Estamos a implementar o nosso plano de produção para atingir um custo de produção abaixo de um euro por disco”, diz João Fonseca. É nestes discos que está o negócio. O aparelho de leitura até poderá ser oferecido. A estratégia é semelhante à dos operadores de telecomunicações, que oferecem ou vendem um telemóvel a baixo preço, para poderem cobrar uma mensalidade.

A primeira venda aconteceu em Fevereiro deste ano. A meta é chegar à rentabilidade em 2017, explicou o empresário ao PÚBLICO, durante um evento em que empresas portuguesas se apresentaram a investidores estrangeiros e que foi promovido pela Portugal Ventures, a sociedade de capital de risco criada pelo Governo e de que fazem parte organismos do estado e investidores privados.

Muitos milhões
Carlos Faro, do Biocant, considera que as empresas de biotecnologia em Portugal não têm dificuldades em encontrar o capital necessário para os primeiro passos. “Para o financiamento do arranque, Portugal tem condições, responde às necessidades do mercado e até é competitivo. O grande problema é depois. Estas empresas consomem muito capital. Quando precisam de 15 ou 20 milhões, já não há cá”.

Nuno Arantes-Oliveira, que também lançou empresas no sector, incluindo a farmacêutica Alfama, argumenta também que “se o projecto é forte, o grande desafio é passar de uma fase de financiamento inicial, para um financiamento de maior escala”.

Os investidores nesta área são tipicamente especializados e estão preparados para obter retorno a longo prazo, diz Arantes-OIiveira. “Há um risco tecnológico, um risco regulatório e menos de mercado”, resume. Ou seja, quando um produto obteve autorizações para ser comercializado, significa que as autoridades regulatórias já deram um aval de qualidade e de inovação. “O investidor especializado sabe isso e por isso é que o valor acrescentado é tão grande. À partida, o produto vai ser melhor do que o que aquilo que está no mercado”.

Estratégias internacionais
Paulo Ferreira dos Santos é outro empreendedor a fazer uma corrida de fundo. Conta que, com alguma frequência, há pessoas que lhe dizem estarem surpreendidas pelo facto de a empresa ainda estar aberta.

A Kinematix surgiu em 2007. Paulo Santos, agora com 50 anos e licenciado em ciências da computação, já tinha criado várias empresas, a última das quais na área do turismo. Em 2004, decidiu voltar à faculdade, para tirar um mestrado em Inovação e Empreendedorismo Tecnológico. “Estava um bocado a prever a crise. Queria mudar de vida. Ou era emigrar, ou voltar para a universidade”, recorda.

Foi na Universidade do Porto que teve contacto com investigadores e decidiu transformar o trabalho académico em negócio. Nasceu a Tomorrow Options, que mais tarde mudaria de nome para Kinematix, e onde trabalham actualmente 24 pessoas. Desenvolve sensores de movimento, com aplicações várias no sector da saúde.

Um dos produtos é uma palmilha especial, que mede os pontos do pé onde uma pessoa faz pressão quando caminha. Serve, por exemplo, para monitorizar doentes com pé diabético, que perdem sensibilidade naquela zona do corpo, desenvolvem feridas e por vezes têm de usar sapatos especiais. A mesma tecnologia é usada para avaliar a utilização de próteses e fazer ajustes. E também pode ser usada para analisar a forma como atletas caminham e correm, ajudando a detectar lesões.

O modelo de negócio da Kinematix usa uma estratégia semelhante à da Biosurfit. O objectivo não é vender os aparelhos, mas sim os relatórios que contêm os dados registados pelos dispositivos. Para aceder aos relatórios, os médicos e demais profissionais de saúde usam um serviço online criado pela empresa.

As vendas da Kinematix só arrancaram este ano e o empresário estima vir a facturar entre 500 mil e um milhão de euros. O investimento até aqui rondou os cinco milhões e o plano passa agora por angariar mais fundos para entrar no mercado americano, onde a empresa já obteve as autorizações para vender.

A estratégia dos empreendedores nesta área é sempre internacional. “Estas empresas já nascem globais, muitas das pessoas tiveram antes experiências fora do país”, observa Nuno Arantes-Oliveira. Paulo Santos, porém, diz que ter arrancado em Portugal trouxe uma dificuldade: não foi fácil testar os dispositivos e, sem testes, é difícil convencer potenciais clientes. “Há uma falta de histórico deste tipo de empresas em Portugal. Não temos um cliente cá”, lamenta.

A este propósito, Carlos Faro fala numa evolução nos últimos anos “Já há uma comunidade de empreendedores no sector, que tiveram experiência e estão a ajudar os novos empreendedores a entrarem no meio mais depressa. As empresas atingem agora uma estrutura e uma organização empresarial mais rapidamente do que há uns anos”.

Um outro desafio, explica, está nos próprios empresários. “A maior parte vem do meio universitário. O primeiro grande desafio que têm é deixarem de pensar como investigadores e pensarem como empreendedores”

Arranque da corrida
A Magnomics é uma empresa que está agora a começar, mas já assenta numa década de trabalho académico. Criada no ano passado por cinco investigadores, conseguiu 600 mil euros de investimento, vindos da Portugal Ventures e de investidores privados.

O objectivo da Magnomics é construir um aparelho que, de forma simples, seja capaz de identificar as bactérias presentes numa amostra de sangue ou de saliva, por exemplo. Isto permite determinar que antibióticos usar, sem recurso a análises demoradas em laboratórios.

“Queremos que qualquer pessoa pegue na amostra, carregue no botão e o aparelho faça tudo sozinho, com o resultado, no máximo, em duas horas”, diz João Pereira, 33 anos, que faz parte da equipa fundadora, depois de ter tirado um doutoramento em Cambridge. O próximo passo é criar um protótipo funcional, que deverá estar pronto antes do final de 2015.

Por causa do uso generalizado de antibióticos, as bactérias estão a tornar-se mais resistentes a estes fármacos, o que tem levantado preocupações entre a comunidade médica e científica. A Magnomics pretende ajudar a que os médicos possam prescrever antibióticos específicos, e não fármacos de largo espectro. “Em vez de ir lá com uma granada, o médico pode ir lá como um snipper”, explica João Pereira, argumentando que “uma era pós-antibiótico seria como uma era pré-antibiótico”.

A empresa, porém, fez um desvio da ideia inicial. Antes de chegar aos humanos, pretende levar a tecnologia à saúde animal. “Estávamos a pedir muito dinheiro [a investidores], que era o dinheiro necessário para chegar à saúde humana”, justifica o fundador.

O alvo passaram então a ser as vacas leiteiras. Em vez de ser necessário levar amostras de leite da vaca para um laboratório, se a Magnomics for bem-sucedida, a detecção de bactérias que provocam infecções nas glândulas mamárias poderá ser feita rapidamente no local. “Não é um mercado particularmente sexy”, reconhece o fundador. “Não é o melhor pitch [apresentação a investidores] do mundo falar em tetos de vaca”. Mas há uma vantagem: a concorrência é mais reduzida. “A saúde animal não é a rapariga com quem todos querem sair. É um mercado que precisa muito de inovação.”

Sugerir correcção
Ler 3 comentários