A Alemanha também não pagou a dívida?

Sobre a sustentabilidade da dívida vários defendem que a solução é não pagar e há mesmo quem argumente com o exemplo de outros que não pagaram e a quem não aconteceu nada. Acho de uma irresponsabilidade atroz dizerem-se coisas destas, uma tristeza quando são políticos, pela publicidade enganosa, uma vergonha para os outros, pela ignorância implícita.

O não pagamento da dívida não é uma solução de recurso mas sim uma inevitabilidade quando já não existe outro meio. Estivemos lá perto quando pedimos ajuda à troika mas alguém que defenda que teria sido melhor não pagar, quer isso fosse feito com uma saída do euro e uma desvalorização forte numa nova moeda ou eventualmente no euro com uma deflação que não quero imaginar, ou não pensa de todo ou tem um raciocínio deveras perverso.

Temos alguns, entre eles um ex-presidente da República, a defender a tese da Argentina e também do Brasil que quando estavam sem soluções disseram: 'nós não pagamos'. Não pagaram e ninguém morreu por isso". Esta é daquelas coisas que alguém com o mínimo de responsabilidade nunca poderia dizer em público, no mínimo por respeito à perda fortíssima de qualidade de vida experimentada por aqueles que viviam nesses países que foram obrigados a soluções desse género.

Ninguém saberá direito o que esta gente pensa quando diz “não pagaram e não se passou nada". Quererão dizer que o pais não implodiu ou que ninguém atirou para lá uma bomba que definitivamente voltasse tudo a um novo inicio? Todos se lembrarão o que aconteceu à Argentina depois que em 2001 anunciou que não pagava a dívida. Dizer-se que entretanto voltou a existir crescimento económico e até taxas de juro razoavelmente baixas é completamente falacioso, que o diga quem lá viveu neste período, que sentiu bem na pele que a recuperação económica só se verificou pela desvalorização do cambio.

É um facto que (ainda) não existe nenhum regime especial de falência para países soberanos, pelo que cada caso é um caso, mas não há milagres económicos, as consequências de uma falência, seja ela individual, de uma qualquer empresa ou de um País depende da capacidade negocial de cada uma das partes. A Argentina em 2005, e depois em 2010, forçou que os detentores da dívida trocassem as suas obrigações por umas outras que prometiam pagar cerca de um terço. A alternativa poderia ser não receber nada e ouvimos os governantes argentinos reclamar o sucesso da operação porque a grande percentagem de credores aceitou a troca. Mas a história não acaba aqui, nem todos aceitaram, e até há consequências curiosas como uma ordem judicial que levou à apreensão de um navio da marinha argentina no Gana e dizem até que a presidente da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, deixou de usar os seus aviões em viagens para fora do país com o medo (e a vergonha) dos mesmos poderem ser apreendidos.

Uma outra questão, ainda mais histórica, quando se fala na problemática da sustentabilidade da dívida e sua eventual restruturação, é o perdão da dívida alemã. Alguém se lembrou disto na Grécia, numa hipótese rocambolesca de ser possível alguma consolidação de contas mas naturalmente ninguém levou a sério. Em Portugal também se começou a ouvir e no manifesto de que todos agora falam, sobre a reestruturação, usa-se como um exemplo a replicar. O documento especifica o perdão da dívida, dado em 1953 à Alemanha, sobre parte da dívida externa, anterior e posterior à II Guerra. Há desde logo uma diferença abissal quando uma operação deste género é decidida pelos credores e não pelos países emitentes. Era o mesmo que dizermos hoje que bom seria se os nossos credores nos perdoassem parte da nossa dívida para nós gastarmos mais algum na promoção da economia e do emprego. Entendo mal quando alguém acredita que um pais pode ser solidário quando toda a história nos mostra que isso só é possível se houver ganhos evidentes para o pais benemérito.

Não acho séria nenhuma analogia da situação portuguesa de hoje com a rendida Alemanha no pós-guerra. Não é só não ser sério, acho um abuso. Quem decidiu o futuro da Alemanha no pós-guerra foram os países aliados, nomeadamente os Estados Unidos da América, Grã-Bretanha, a França e a União Soviética.

Ainda a guerra não tinha acabado já o plano Morgenthau, proposto inicialmente pelos americanos, tinha como principal objectivo retirar qualquer capacidade de guerra à Alemanha. O plano transformaria o país numa imensa região agrícola e a indústria pesada desmantelada ou oferecida aos aliados. Milhões de alemães passaram a trabalhar como escravos num país entretanto dividido administrativamente. Criou-se um “Conselho de Controlo Aliado”, também conhecido por “Quatro Potências”, que com a justificação das reparações de guerra sugavam daquele país toda a riqueza. Os exemplos são muitos, nomeadamente carvão que era exportado a metade do preço do mercado, abate de florestas, proibição de exportar aço e carvão em troca de produtos agrícolas. É fácil imaginar as dificuldade daquele povo que passou a ter sérios problemas de nutrição e nem a ajuda americana nem a emissão de dívida compensavam a situação.

O drama só não destruiu completamente o país porque entretanto as relações entre os aliados, especialmente entre os americanos e os ingleses e os soviéticos se deterioraram e foi a partir daqui que se incluiu a Alemanha no plano Marshall e se começou a devolver a autonomia às autoridades alemãs. É nesta sequência que surge o Acordo de Londres, que é mencionado no nosso manifesto sobre a reestruturação, como um exemplo de perdão de dívida atinente à revitalização sustentada da economia alemã. Com franqueza, é algo comparável?

As contas são fáceis de fazer. O perdão da dívida alemã, decidido pelos credores, volto a dizê-lo, não chegou nem perto da riqueza que foi roubada e destruída naquele país no pós-guerra. Aquilo que mais tarde se veio a chamar de milagre económico alemão  (Wirtschaftswunder) não teve naturalmente nada a ver com o perdão de dívida. A dívida que foi perdoada não passou de uma medida política de branqueamento da exploração que tinha sido feita na Alemanha. O milagre económico alemão é uma história bem diferente e justifica-se com um período de baixa inflação, redução de impostos, poupança elevada, acumulação de capital e orçamentos públicos equilibrados, ou como agora está mais na moda dizer-se, com saldos primários positivos. Chama-se portanto milagre não pela originalidade das politicas utilizadas mas sim pela dificuldade natural de um país atravessar uma crise desse tamanho de uma forma aparentemente tranquila.

Comparar a situação portuguesa com a alemã do pós-guerra é um exercício de mau gosto. Achar que os nossos credores se deveriam comportar como aqueles que perdoaram a dívida alemã é discurso de político pouco sério. Pensar que podíamos ser nós a decidir algo parecido, já que os credores não o fazem, deveria ser crime por falta de patriotismo.

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