120 ou 160 ou 400 ou 1000

O problema de o Governo nunca assumir as suas decisões políticas como opções ideológicas mas sim como respostas a necessidades inadiáveis é que isso o obriga constantemente a encontrar (ou a inventar) uma vasta lista de justificações para as suas acções. Género: nós não queríamos privatizar os Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) por nada deste mundo, só que a) o legado do PS assim obriga, b) a União Europeia disse que nos multava, c) a dívida dos estaleiros é colossal, d) Saturno está em Sagitário, e) encontrámos uma empresa portuguesa que cria resmas de postos de trabalho.

Felizmente para nós, e infelizmente para o Governo, em alturas de crise o nível de escrutínio é superior ao habitual, e o spin colado a cuspo costuma dar mal resultado. Ingénuo como sou, até estou disposto a aceitar que a solução encontrada para os ENVC foi a melhor possível e que não há negociatas por detrás dela. Mas nem a minha vasta ingenuidade é suficiente para engolir a história dos 400 trabalhadores que a Martifer vai contratar, que podem ser 1000 e que, afinal, são apenas 160. Ou 120. Em três anos. Ora, basta serem encontradas inconsistências em algo tão simples como a expectativa de criação de emprego no futuro projecto para boa parte da argumentação governamental desabar como um castelo de cartas.

E por isso, ao contrário do que ontem Aguiar-Branco veio sugerir, o PS não está a “lançar a confusão”, mas apenas a fazer o seu dever, quando chama a atenção para o facto de a proposta da Martifer assegurar apenas 120 postos de trabalho (mais 40 em actividades de suporte) nos primeiros três anos de actividade. O ministro da Defesa defendeu-se, afirmando que se tratava de um documento que já tinha “cerca de quatro meses”, e que depois disso “a Martifer fez uma comunicação oficial” para a CMVM indicando a sua pretensão de criar “400 postos de trabalho” e que é “essa informação que se deve ter em conta”.

Aí, há que concordar com o senhor ministro: sim, é informação que se deve ter em conta. Muito em conta, mesmo. Em particular, para que Aguiar-Branco e a Martifer nos venham explicar porque é que uma empresa que ganha um concurso referindo apenas na sua proposta a criação de 120 postos de trabalho decide posteriormente em comunicado à CMVM subir esse número para os 400? Faz algum sentido guardar trunfos num concurso para depois a empresa os mostrar quando eles já não servem para nada? Ou será que servem?

Bom, assim de repente, eles servem para ajudar a justificar a matemática do senhor ministro. Recordo que, numa longa entrevista à Antena 1, Aguiar-Branco fez as seguintes contas em relação aos 600 despedidos dos ENVC: “Cerca de 230 trabalhadores estão em condições de aceder à reforma, restam-nos 370, que há a hipótese de em Janeiro estarem a trabalhar numa nova empresa, na mesma actividade e na mesma região.” Donde, o comunicado da Martifer à CMVM coincide com as contas do ministro, mas não com as contas que ela apresentara no concurso para a concessão dos estaleiros. E basta isto – somente isto – para que se levantem as costumeiras suspeitas de favor. Ora, não teria sido mais simples desde início o Governo argumentar, como o presidente da Empordef sugeriu no Parlamento, que o Estado não percebe nada de construção naval e que os ENVC tinham um “déficit de imagem terrível”, do qual nunca conseguiriam recuperar? Seria mais simples e – desconfio – bastante mais honesto.
 
 

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