Análise: A China, da travagem suave ao risco da derrapagem

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O Presidente chinês, Xi Jinping, já tinha anunciado a mudança do modelo económico FENG LI/AFP

Uma boa forma de se compreender esta segunda-feira negra que varreu as principais bolsas mundiais é imaginar que a economia chinesa é um automóvel que circula há quase 30 anos acima dos 100km/h e que se depara com uma série de curvas que obrigam o seu condutor, o Governo, a reduzir a velocidade.

Quando esta nova forma de conduzir a economia foi anunciada, todos os organismos internacionais, da OCDE ao Banco Mundial, aplaudiram a decisão e consideraram que a China tinha travões, suspensão e experiência suficientes para a gerir. O problema é que no último mês os mercados se foram apercebendo que a realidade não era bem assim. Que em vez de uma condução suave o Governo chinês se sentiu obrigado a tomar medidas de urgência para evitar o despiste. E o que estava anunciado como apenas mais uma etapa fácil na impressionante viagem iniciada por Deng Xiaoping em 1978 está a ser interpretada pelos investidores como uma arriscada manobra capaz de abalar os alicerces da economia mundial.

O Presidente chinês, Xi Jinping, tinha anunciado a mudança do modelo económico que garantiu à economia três décadas de crescimento anual acima dos 10% como uma “nova normalidade”. Na análise do Banco Mundial, num documento de Junho deste ano, o que estava em causa a curto prazo era a adopção de políticas destinadas a “abrandar o rápido crescimento do crédito, conter o shadow banking (fundos de risco, veículos financeiros, seguros de crédito e de hipotecas como os que estiveram na origem da crise de 2007), limitar os empréstimos dos governos locais e reduzir o excesso de capacidade da indústria”. Por outras palavras, a fixação na indústria, nas exportações e em taxas de crescimento elevado deixava de existir. “A médio prazo, um crescimento menor é consistente com a mudança gradual do modelo de crescimento da China, da indústria para os serviços, do investimento para o consumo, das exportações para a o mercado interno”, explicava o Banco Mundial.

Os primeiros andamentos desta mudança radical do modelo económico não suscitaram grandes preocupações. Num relatório de Março deste ano, a OCDE afirmava que os “riscos são geríveis e um abrandamento abrupto pode ser evitável”. O que tinha acontecido no ano passado, quando a economia cresceu 7,4% em vez dos 7,5% previstos ou o aparecimento de um sector de serviços que desde 2013 pesa mais no produto do que a indústria, parecia indicar que tudo corria como o previsto. O Governo cortava no crédito à construção de novas infra-estruturas, a bolha imobiliária que gerou no país um impressionante parque habitacional sem procura estava a reduzir-se e, aos poucos, a “nova normalidade” parecia consolidar-se. Até que os indicadores do primeiro e do segundo trimestre começaram a mostrar que a aterragem estava a ser mais brusca do que o planeado.

Em vez do projectado crescimento de 7%, a OCDE estima agora que o PIB aumente 6.7% e há analistas que afirmam que esse valor poderá ficar nos 4% ou menos. Porque a procura interna está abaixo das previsões (esta segunda-feira o Financial Times notava que, por exemplo, a venda de smartphones caiu 10% no segundo trimestre do ano, quando no período homólogo de 2014 tinha aumentado 30%), a actividade industrial recuou acima do previsto e as exportações, o habitual motor do crescimento, tinham caido em Julho 8.1%. Foi então que, em vez de gerir a trajectória do ajustamento como previsto, o Governo sentiu a necessidade de recorrer a medidas extraordinárias. Na semana de 11 de Agosto levou a cabo a maior desvalorização da moeda nacional, o yuan, em 20 anos, uma tentativa de embaratecer a produção chinesa para incentivar as suas exportações, insistindo na fórmula que tentara alterar. Para lá desta iniciativa, a descrença dos chineses na situação da economia levaram a uma corrida à bolsa que no último mês e meio derreteu os ganhos de 50% registados desde o início de 2015.

Para um português habituado a taxas de crescimento negativas ou abaixo dos 2%, custa a perceber como é que uma economia com um desempenho de 4 ou 5% pode ser um problema. Na China, porém, é. Apesar de ser a segunda maior economia do mundo, o rendimento per capita coloca-a na faixa dos países em vias de desenvolvimento. Apesar de 500 milhões de pessoas terem saído dos níveis de pobreza desde 1978, a China é, depois da Índia, o país do mundo com mais pobres. Qualquer movimento que altere a trajectória dos últimos anos é um foco potencial de instabilidade política. Robert Saphiro, ex-conselheiro do presidente Clinton, lembrava no jornal britânico The Guardian que “a liderança chinesa tem tido uma política fundamental que consiste em gerar um crescimento suficientemente grande para gerar emprego para cerca de 10 milhões de pessoas por ano”. Uma vez que organismos internacionais como a OCDE estimam que até 2020 cheguem às cidades mais 100 milhões de chineses, é fácil perceber que esse formidável desafio exige a manutenção de altas taxas de crescimento. 

Não foi, no entanto, o risco interno que provocou as quedas abruptas nas bolsas mundiais desta segunda-feira. A China tornou-se a fábrica do mundo e o seu sucesso ou insucesso são o sucesso ou insucesso de vários países. A China foi responsável por um terço do crescimento mundial desde 2008/09 e as suas compras em África representam, nas contas da OCDE, 6% do PIB do continente. As suas imensas zonas industriais consomem quase 70% do mercado mundial de minério de ferro e alumínio, 60% do manganésio e 35% do cobre. A China é o segundo maior importador de petróleo do mundo e está prestes a ultrapassar os Estados Unidos.

Para países com altas taxas de dependência das exportações de matérias-primas, como o Brasil, a África do Sul ou a Austrália, o abrandamento da actividade na China implica fortes desequilíbrios nas suas balanças externas. E para os países que exportam produtos acabados, sejam carros ou produtos de luxo, como a Alemanha ou a França, a contracção da economia chinesa é uma dor de cabeça que a prazo pode causar quedas no PIB ou desemprego. Não admira por isso que as bolsas mundiais tenham reagido nos limiares do pânico. Nos dias que correm, o peso do país no mundo é demasiado grande para que uma crise interna possa ser gerida sem abalar a ordem internacional.

Mas estaremos condenados a uma perturbação mais grave do que a que varreu a economia mundial após a falência do Lehman Brothers? Os analistas dividem-se. A maioria duvida que os indicadores fundamentais da economia chinesa sejam tão dramáticos como os que o índice da Bolsa de Xangai sugere. Lembram que a China tem uma dívida global aceitável (uns 220% do PIB, entre o Estado e os particulares), que as taxas de poupança estão entre as mais altas do mundo (o que a coloca fora dos humores da banca internacional), que as suas reservas, estimadas em 3,36 biliões de euros, ou as suas taxas de juro conferem às autoridades uma ampla gama de recursos para atacar a crise. Mas há também os que suspeitam que o "tigre" da economia mundial está a cair na “armadilha do rendimento médio”, a etapa na qual boa parte dos países em desenvolvimento soçobram após vencerem as primeiras batalhas da modernização e do crescimento.

Ainda é cedo para se perceber o que está para a acontecer. Certo, é que a mudança na China não vai ser um passeio com curvas fáceis pelo caminho. O que acontecer vai determinar a face da economia mundial do futuro próximo.

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