Utentes com mais rendimentos podem vir a pagar metade dos serviços públicos de saúde

A necessidade de acautelar o futuro levou ontem Correia de Campos a anunciar uma ideia polémica: a da mudança do modelo
de financiamento do Serviço Nacional de Saúde, pondo os utentes a pagar parcialmente os custos. As críticas a uma medida alegadamente "inconstitucional" não se fizeram esperar. Por Alexandra Campos

O ministro da Saúde, Correia de Campos, admitiu ontem a possibilidade de ter de recorrer a medidas drásticas, alterando o modelo de financiamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e pondo os utentes a pagar parcialmente os custos, caso não consiga controlar rapidamente a despesa no sector. Apesar de ter sido apresentada com uma hipótese em ponderação, a ideia desencadeou de imediato reacções de repúdio de todos os quadrantes, até porque levantará problemas de inconstitucionalidade.O ministro acredita, porém, que é possível avançar nesta direcção "sem violar a Constituição". A ideia seria a de organizar a procura do SNS em três patamares: "um de cobertura a cem por cento, outro de cobertura a 75 por cento e outro a 50 por cento", pagando os utentes o restante, como explicou sucintamente na cerimónia de abertura do primeiro Seminário Nacional sobre Financiamento Hospitalar. Mais tarde, em Vilamoura, adiantou que tem "praticamente preparado" um diploma que cria um grupo de trabalho cuja missão é equacionar as soluções para o futuro. O resultado deverá ser conhecido até ao final deste ano.
Actualmente, os cidadãos pagam apenas taxas moderadoras, que são iguais para todos, apesar de muitas pessoas estarem isentas (ver caixa). A Constituição diz que o direito à protecção da saúde é "tendencialmente gratuito", tendo em conta "as condições económicas e sociais dos cidadãos".

Dúvidas sobre o alcance da medida
O ministro não esclareceu se estes novos escalões de pagamento se aplicariam apenas às consultas ou também às intervenções cirúrgicas e aos internamentos, comentou ao PÚBLICO o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), Manuel Delgado, responsável pela organização do encontro.
Surpreendido com as críticas que se foram sucedendo ao longo do dia, Delgado defendeu que é necessário contextualizar as declarações de Correia de Campos, que estava a falar para uma plateia de administradores hospitalares - e a quem chamou a atenção para a necessidade de poupança e rigor na gestão dos serviços.
Se não se verificar nenhum "milagre de crescimento" na situação económica do país, e se não "conseguirmos [concretizar] a cruzada em que estamos empenhados, o leque de soluções alternativas ao actual sistema de financiamento da saúde é muito estreito", explicitou à saída do encontro Correia de Campos. Mesmo assim, disse ser sua "convicção plena que se poderá chegar ao fim de 2006 e mostrar que o [actual] modelo é viável". Por isso é que Manuel Delgado desvaloriza a hipótese de mudança do modelo de financiamento, sublinhando que este "cenário drástico" apenas se colocará numa situação de "colapso financeiro".
Seja como for, à semelhança dos representantes dos partidos políticos, de várias associações de utentes dos serviços de saúde e até daquele que é conhecido como o pai do Serviço Nacional da Saúde, António Arnault, o presidente da APAH considera que esta medida é inconstitucional. "Eu acho que é inconstitucional, mas [Correia de Campos] disse que tinha pareceres" que apontam no sentido contrário, acrescentou.
As declarações do ministro foram então uma espécie de ameaça aos administradores hospitalares a quem este ano foi exigido que mantivessem a despesa ao nível de 2005? "Foi um desafio", reconhece Manuel Delgado.
Já o anterior ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, e o próprio ex-primeiro-ministro Santana Lopes tinham aventado a hipótese "de os utentes com mais rendimentos passarem a pagar em parte os custos no SNS e isso não foi para a frente", lembrou.
O que Luís Filipe Pereira teve em estudo foi a hipótese de criar taxas moderadoras diferenciadas na saúde. A medida estava a ser analisada por um grupo de trabalho desde 2003 e desencadeou polémica, sobretudo depois de Santana Lopes ter feito declarações públicas sobre o tema, em Setembro de 2004. "Aqueles que mais podem, quando recorrem ao Serviço Nacional de Saúde, vão pagar consoante o rendimento", disse Santana Lopes na Universidade de Verão do PSD.
Ontem, um dos primeiros a reagir foi António Arnault, o advogado que criou o SNS em 1979, quando era ministro dos Assuntos Sociais. Mostrando-se "chocado", sobretudo porque a proposta vem "de um ministro socialista", Arnault pediu ao primeiro-ministro para travar estes "ímpetos capitalistas".
Na opinião de Arnault, ao ser tendencialmente gratuito, o sistema apenas permite o pagamento de taxas moderadoras. com Idálio Revez

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