Ricardo Salgado é o rosto actual de uma família que sempre teve influência junto do poder político

Pessoas ligadas ao grupo refutaram ao PÚBLICO a ideia de poder excessivo. Mas são cada vez mais os que não têm dúvidas sobre a influência do banqueiro.

Quatro vezes por ano a cena repete-se. Ricardo Salgado chega à sala onde vai divulgar as contas do banco. Coloca-se a meio da enorme mesa oval, ladeado dos restantes gestores. Fato escuro e, muitas vezes, gravata em tons de azul a condizer com o olhar. Penteia para trás o cabelo com brilhantina. Está grisalho. Não se pode dizer que o seu ar não seja impecável.

Começa a falar com voz pausada, um pouco monocórdica. Salgado é um puro produto da sua educação. Quando responde às perguntas colocadas pelos jornalistas, acaba as frases com um arrastar da voz: "Tá, tá beeem?"

Com 66 anos, é casado com Maria João, uma mulher discreta. Têm três filhos. Estudou no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), onde Jacinto Nunes, ex-ministro das Finanças, foi seu professor. "Era tímido, mas um aluno bonzinho. Era muito melhor que os primos." Ex-colegas com quem o PÚBLICO falou contam que "era aplicado, mas já era elitista e não se juntava ao rebanho". Fez tropa na Reserva Naval.

Antes do 25 de Abril, o clã Espírito Santo "era muito influente e estava muito bem relacionado em termos internacionais", observa Jacinto Nunes, ex-governador do Banco de Portugal. "Eles desenvolviam relações com os Rockfeller." Mas davam-se ainda com o banqueiro Rothschild e com o antigo presidente francês Giscard d"Estaing. Jacinto Nunes acrescenta que a família "sempre teve fama no sector financeiro de ser cuidadosa e profissional".

Quando terminou o curso, Salgado cumpriu a tradição e foi trabalhar aos balcões do banco. Por pouco tempo. As Forças Armadas marchavam sobre Lisboa. Depois da revolução Salgado foi apoiado pela banca internacional. Quando morreu Manuel Ricardo, abriu-se a discussão sobre o futuro patriarca. O nome Espírito Santo tem muita força. Quem lutou ganhou a liderança. E Salgado foi o eleito para mandar no grupo nesta nova era, suplantando José Roquette.

O reerguer do império
No regime democrático Ricardo Salgado emergiu como uma figura de referência do sistema financeiro português. É um banqueiro no sentido clássico do termo, pois a sua família é dona do capital. Mas não é um bancário de gema, como Artur Santos Silva (BPI) e Jardim Gonçalves (BCP) que, por essa via, atingiram o topo da carreira. Salgado reergueu, ampliou e diversificou os interesses do grupo numa dimensão que não se verificava antes da Revolução. Hoje a família Espírito Santo é a única em condições de dizer: sofri o exílio como as outras, mas sobrevivi e existo há mais de 140 anos. A marca mantém o vigor de antigamente.

"Sem grandes rasgos, ele tem feito uma gestão segura e ponderada", considera Jacinto Nunes. Com um valor de mercado de 4,6 mil milhões de euros, o BES alcançou em 2009 um lucro de 520 milhões de euros. O valor consolidado dos últimos cinco anos ascende a 2,3 mil milhões de euros, com distribuição de 640 milhões de euros de dividendos.

Joe Berardo diz que tem "grande consideração" por Salgado. "É um banqueiro que é também um homem de negócios, que compreende muito bem os clientes quando estão apertados e percebe que as coisas não correm sempre como se espera."

É preciso não desiludir o clã. Apesar de não ser o maior banco português, ficando atrás da CGD e do BCP, a sua capacidade de influência é mais abrangente. Os dirigentes bancários com quem o PÚBLICO falou elogiaram a "competência" com que Salgado lidera o BES, mas destacaram "o modo tentacular" como se ingeriu em todas as actividades e a forma como aparece "em todos os momentos associado ao poder".

O banqueiro é um pragmático e cumpre o seu papel: defender os interesses do clã que chefia: preservar a fortuna; ganhar mais; ter mais poder. Mas é também um "mágico", capaz de sair das situações mais incómodas, pois o banco surgiu associado a vários escândalos e não foi beliscado.

Salgado está empenhado em proteger o bom nome do BES, que é cotado. "Misturar os negócios financeiros com os não financeiros (GES) é um erro formal e factual", defendeu um alto responsável do BES. "São realidades diferentes." É certo que não é o líder do GES, que é comandado por um primo. Mas quem é que sabe?

O CEO do BES não é um banqueiro ortodoxo. É o rosto de um grupo complexo e, por vezes, com interesses divergentes. E de aritmética difícil. Por essa razão a fusão entre o BES e o BPI não se fez, pois feria os equilíbrios familiares.

O acesso a Ricardo Salgado não é fácil. Por feitio ou por estratégia acabou por construir à sua volta uma aura de gravidade que ajuda a completar a ideia de alguém muito poderoso, distinguindo-se de muitos homens públicos que são feitos de uma matéria mais trivial.

Sem filiação política?
Uma das características da família é ter uma agenda convergente com o poder que impera. Mas se o governo mudar, volta a convergir na mesma. Não é um agente ideológico. Instalou-se na primeira divisão do poder, o que lhe dá capacidade de acção directa e informal. Numa entrevista ao jornal i, em Junho de 2009, Salgado explicou o que já se sabia: "Os banqueiros não têm filiação política." As suas relações com Sócrates "são meramente institucionais". Será assim? Em festas sociais, nas vésperas das últimas legislativas, membros do GES não escondiam a inclinação por Sócrates. E Salgado deu entrevistas a apelar à maioria absoluta do PS. E tem estado na linha da frente ao lado do Governo a defender as grandes obras públicas, que, aliás, o banco financia.

Para Luís Mira Amaral, presidente do BIC Portugal, Salgado "é muito influente na sociedade portuguesa". "Tiro-lhe o chapéu, porque ele seguiu uma estratégia de crescente influência da vida portuguesa." Observa que "durante anos o poder esteve repartido entre dois banqueiros, Ricardo Salgado e Jardim Gonçalves (ex-BCP), que faziam parte do bloco central político financeiro que comandava a vida portuguesa". E conclui: "Jardim deixou-se cair e ficou apenas Salgado."

Mas o CEO do BES concentra nas suas mãos um poder excessivo? "Não sei se se pode dizer tanto", afirma Jacinto Nunes. "Que tem grande poder não há dúvida, mas há a CGD e agora há a ideia de que o BCP é o banco indirecto do Estado, pois não faz frente ao poder central." E faz notar que faz parte da genética da família "cultivar boas relações com os governos que estão no poder, o que sempre aconteceu na história do grupo", mas isso "não impede Salgado de ser bom banqueiro".

Pessoas ligadas ao BES, e o próprio Ricardo Salgado, não se revêem na ideia de que o grupo tem um poder excessivo. E ficam mesmo indignados quando os acusam de excesso de influência. Goste-se ou não, o presidente do BES carrega às costas a imagem de banqueiro florentino, um estilo pouco habitual em Portugal. Mais do que um "cavalheiro", como eram conhecidos os anteriores patriarcas, actua com inteligência. Um banqueiro que não consiga fazer-se ouvir junto do primeiro-ministro torna-se irrelevante. Por sorte, ou por antecipação, Salgado consegue sempre fazer pontes na governação. Tem apoiado Sócrates, Miguel Frasquilho, quadro do BES, está nas listas de Aguiar Branco, e no grupo já se conjectura que o próximo primeiro-ministro será Passos Coelho. Coelho é administrador da Fomentinvest, participada do BES, com o pelouro financeiro.

A 20 de Maio 2005, já com o caso Portucale a correr, o PÚBLICO abordou o tema da crescente influência da "dinastia". Na altura uma fonte ligada ao GES negou existir uma situação de favorecimento. E defendeu-se lembrando que três projectos na área imobiliária estavam há vários anos por aprovar: Comporta/Tróia (20 anos); Herdade da Vargem Seca (16 anos); e um no Algarve (10 anos), que fora vendido. "Se houvesse tráfico de influências, qualquer destas situações estaria resolvida e há muito tempo", comentou o mesmo responsável.

Por vezes, Salgado puxa dos galões. Mas não é por capricho. É porque cumpre a missão de empresário: não fazer guerra ao poder. Em 2005, o Wall Street Journal publicou um artigo de Miguel Frasquilho, então porta-voz do PSD, a criticar a política seguida no país. Da Turquia Salgado telefonou-lhe e repreendeu-o. Mais tarde explicou que fez o telefonema, porque não "gosta de ouvir dizer mal do país fora de portas".

A presença na PT tem sido estruturante na consolidação das relações com o Estado. Revelou-se um bom negócio. Em 2008 o BES foi o segundo accionista da PT que mais recebeu de serviços prestados à operadora: 23,4 milhões de euros (com uma posição idêntica a CGD facturou 4,5 milhões de euros). "O BES é o verdadeiro accionista de referência da PT", nota um quadro da operadora.

"Na CGD, cada cabeça, cada sentença", mas "daqui a 20 anos terão passado pelo governo 20 primeiros-ministros, a PT terá conhecido 20 presidentes, mas a família ainda cá estará".

Uma família que se mantém poderosa ao longo de quatro gerações transmite uma ideia de estabilidade, que dá muita força. O banqueiro é apenas o chefe de uma orquestra que continuará a tocar quando partir.

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