"O PCP nunca tentou fazer um golpe" e Álvaro Cunhal "nunca quis fazer uma revolução socialista em Portugal"

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Raquel Varela defende que o PC queria era estar num governo com o PS PEDRO CUNHA

O projecto do PCP incluía um capitalismo regulado, a manutenção de Portugal na NATO e da propriedade privada. É o que conclui a historiadora Raquel Varela

Nos primeiros dias de Maio de 1974, Mário Soares reúne-se com diplomatas britânicos e informa-os de que o Partido Comunista Português (PCP) tem obrigatoriamente de integrar o Governo Provisório. Se tal não acontecesse, Álvaro Cunhal poderia exigir eleições imediatas e o PCP venceria as legislativas. É o partido político mais bem organizado, com cerca de dois mil militantes, preparadíssimo para os actos eleitorais, argumenta Soares, notando que, no executivo, os comunistas seriam imprescindíveis para o controlo do movimento social.

Em carta, o embaixador norte-americano em Bona justifica às autoridades do seu país a necessidade, sublinhada pelo fundador do PS, de partilhar o poder com o PCP: "Soares avançou duas razões para a inclusão dos comunistas no Governo: primeiro, como o novo Governo era nomea-do em vez de eleito, achava-se que se os comunistas não entrassem no Governo iam pressionar para eleições livres imediatas; segundo, os próximos meses iam ser decisivos para o Governo lidar com os inúmeros problemas de Portugal e seria muito melhor ter os comunistas a partilhar responsabilidades pelos sucessos e falhanços do seu Governo do que estarem numa posição crítica."

Revolução fora dos planos

Para Raquel Varela, historiadora e autora do livro A História do PCP na Revolução dos Cravos (Bertrand), onde se podem ler alguns dos registos da jornada europeia de Soares (depositados nos National Archives, na Grã-Bretanha), o temor do líder socialista não sustenta a ameaça de uma tomada de poder pelo PCP. Porque os comunistas nunca o quiseram - nem no período imediatamente após o 25 de Abril, nem em Novembro de 1975. "Nunca existiu o risco de o PCP tomar o poder em Portugal. Esse argumento é desmentido pela documentação, mas foi utilizado pelo PS para aliar-se aos sectores mais reaccionários da sociedade, nomeadamente a hierarquia da Igreja e das Forças Armadas", afirma a investigadora, que justifica os alertas transmitidos por Soares com "a necessidade de existir um Governo de frente popular na transição para o regime democrático".

A recusa do PCP em lutar por uma revolução socialista, optando politicamente por um projecto de capitalismo regulado, sem exigir a saída de Portugal da NATO e o fim da propriedade privada, é um dos elementos-chave do livro de Raquel Varela, versão editada da sua tese de doutoramento em História Política e Institucional no ISCTE (Instituto de Ciências do Trabalho e da Empresa). A História do PCP na Revolução dos Cravos é uma análise, amplamente documentada e detalhada, das estratégias e das políticas do PCP durante os 19 meses que distaram entre a Revolução e o 25 de Novembro de 1975, quando um golpe militar encerrou o período revolucionário.

É precisamente a partir da investigação sobre este dia, ou melhor sobre as posições tomadas pelo PCP nesta data, que Raquel Varela chega à conclusão de que a tese sobre a ambição dos comunistas de formarem um Governo PCP na Europa Ocidental do pós-guerra não passa de um mito. "Os próprios documentos soviéticos e norte-americanos revelam isso. O que o PCP queria era estar integrado num Governo com o PS, queria negociar lugares com os socialistas", diz, notando que Cunhal "nunca quis fazer uma revolução socialista em Portugal". "Defende-a, mas todo o seu argumentário é de que não há condições para a fazer. Cunhal foi-se adaptando ao rumo da revolução - o que quer em Abril de 1974 é diferente do que defende em Junho do mesmo ano. Não questionou a manutenção de Portugal na NATO num quadro de regime capitalista, mas, de acordo com a relação de forças, quis sempre ganhar o maior número de direitos para os sectores de trabalhadores."

Varela lembra ainda que, apesar do rompimento entre PS e PCP a partir de Março de 1975, os projectos dos dois partidos, ainda que distintos, não eram antagónicos - estava excluída a equação ditadura versus democracia, capitalismo versus socialismo, considera a historiadora.

O acordo de Cunhal

Para contrariar a teoria, comummente defendida, de que o PCP liderou o golpe de 25 de Novembro ambicionando tomar o poder (tendo sido obrigado a recuar quando se confrontou com uma adversa relação de forças), Raquel Varela apresenta uma narrativa, hora a hora, dos acontecimentos vividos naquele dia. A partir da análise de um vasto número de fontes documentais, a investigadora conclui que "o PCP nunca tentou fazer um golpe no 25 de Novembro ao qual o PS, o Grupo dos Nove e os sectores mais à direita responderam com um contragolpe". Isto porque, afirma, o que aconteceu naquele dia "estava a ser preparado desde o Verão pela direita, para pôr fim ao processo revolucionário".

Quem era essa "direita?" "Estamos a falar do Grupo dos Nove, do PS, da hierarquia da Igreja Católica e até de alguns sectores da extrema-esquerda, como o PCTP/MRPP, que apoiou o golpe", responde. E salienta, tal como se pode ler no seu livro, que Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP, foi um dos dirigentes políticos que evitaram a guerra civil. Porque precisamente no dia 25 firmou um acordo com o major Melo Antunes, do Grupo dos Nove, comprometendo-se a não resistir ao golpe militar. "Aquilo que o PCP controlava e que poderia ter levado a uma ruptura de guerra civil - os fuzileiros, a Intersindical - recebe ordens para recuar. As unidades militares de esquerda tinham mais força do que as de direita e, no entanto, não reagem a um golpe que acontece e termina sem mortos. E a única justificação para terminar sem mortos é porque o PCP acorda em não resistir", argumenta.

Embora o encontro entre Cunhal e Melo Antunes a 25 de Novembro de 1975 esteja documentado, Varela acredita que o acordo tenha decorrido alguns dias antes do golpe que pôs fim à crise político-militar e terminou com a duplicidade de poderes nas Forças Armadas. Até porque os Nove poderiam adivinhar que as unidades militares afectas ao PCP não deixariam de responder a uma insurreição militar, como acontecera a 28 de Setembro de 1974 e 11 de Março de 1975, refere Raquel Varela.

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