O ministro e a "lenda" da crise estudantil de 69 em Coimbra

Para José Hermano Saraiva, ministro da Educação Nacional entre 1968 e 1970, foi "um episódio menor, sem importância nenhuma", descrevia numa entrevista ao PÚBLICO em 1999. A crise estudantil de 69, que deixou Coimbra em estado de sítio durante meses, levou à prisão e expulsão de alunos e professores e que se assumiu como o mais importante movimento português de revolta universitária foi, para o historiador, "uma lenda" que alguém criou.

Foi essa a ideia que Saraiva deixou ao longo dos anos, em entrevistas, quando questionado sobre o assunto. Em algumas acrescenta pormenores sobre a sua versão dos acontecimentos daquele célebre 17 de Abril em que inaugurou, com o presidente Américo Tomás, o edifício das Matemáticas; noutras desvaloriza. Talvez seja por isso que alguns dos protagonistas, como o então presidente e o vice-presidente da Associação Académica de Coimbra (AAC), os socialistas Alberto Martins e Osvaldo de Castro, não querem hoje, mais de 40 anos depois, falar sobre o assunto - em especial numa circunstância como esta. Tal como Veiga Simão, que lhe sucedeu no cargo em 1970.

Estava-se em Abril de 1969, a recém-eleita AAC tinha pedido ao reitor e a todos os governantes licença para falar na cerimónia e só recebera negas. A comitiva presidencial foi recebida por milhares de estudantes, ordeiramente, mas com cartazes com palavras de ordem contra as perseguições a professores e a gestão administrativa da associação. No interior do edifício, depois de o reitor discursar, Alberto Martins pede para falar. "Em nome dos estudantes de Coimbra, peço a palavra!" Américo Tomás ficou encabulado: "Bem, mas agora vai falar o sr. ministro das Obras Públicas", respondeu. Depois de trocar umas palavras com José Hermano Saraiva, a comitiva saiu da sala apressadamente, sob os apupos dos estudantes.

A visão de Saraiva era diferente: dizia que Alberto Martins lhe fez "uma safadeza. Uma falta de carácter". "Se ele queria falar, tinha-me dito e eu tinha-lhe dito que sim", assegurava. Martins seria preso nessa noite e depois libertado, mas os dirigentes da AAC são suspensos das aulas. A contestação estudantil cresce: decreta-se luto académico, fazem-se reuniões magnas em vez de aulas, a Queima das Fitas é cancelada, faz-se greve aos exames e a cidade é ocupada, em peso, pela GNR. Há cargas policiais.

No final de Junho, Saraiva instaura processos disciplinares a dezenas de estudantes. Os dirigentes estudantis - em que se incluem Martins, Castro e Celso Cruzeiro - que mantêm papéis de relevo são mandados para a tropa, para Mafra e Vendas Novas. Não será despicienda a influência do espírito da luta estudantil de Coimbra nos quartéis neste período pré-74. Os militares à força discutem com os de carreira a natureza do regime, a função da instituição militar e a necessidade da revolução, conta Celso Cruzeiro no seu livro Coimbra, 1969.

"Esse episódio não teve importância nenhuma. Criaram essa lenda", dizia Saraiva à Focus em 2004, acrescentando que o seu discurso até fora muito aplaudido. Em Janeiro de 1970, Saraiva é substituído por Veiga Simão, que aceita certas reivindicações dos estudantes, como o seu regresso à universidade e a eleição de um novo reitor para Coimbra.

"Nunca fui político, não tenho sentido político, não tenho o gosto da política e penso que a política é apenas uma maquilhagem da realidade", afirmou a A Capital em 2005, sobre o período em que foi ministro. Conta que foi vítima de telefonemas anónimos com ameaças de morte em 1975. Seriam "garotos", acreditava. "Não tinha inimigos, nunca deixei prender ninguém. Pelo contrário, sempre fui totalmente contra esses processos policiais. Fiz até um acordo com o ministro do Interior: a polícia nunca entra nas escolas! Haja o que houver! E assim foi." Mas não foi.

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