Manual dos estereótipos

Barrigudos, atarracados, com bigodes fartos e jeito para merceeiros ou padeiros. A imagem tradicional dos portugueses no Brasil é feita com estereótipos alimentados desde a altura em que emigrantes analfabetos e pobres chegavam ao porto de Santos. O legado colonial de um Portugal imaginado como arcaico ainda serve como explicação para os dramas do Brasil.

No seu "'Manuel' de Piadas de Português", que inclui algumas graças sobre brasileiros e a oferta de três genuínos bigodes recortáveis de modelo infantil, feminino e masculino, Paulo Tadeu dedicou-se a inventariar em edição de bolso um dos desportos favoritos dos brasileiros: contar anedotas nas quais os "joaquins" e os "manuéis" de Portugal são os bombos da festa. A idealização dos personagens foi feita a partir das remessas de imigrantes andrajosos e analfabetos de outros tempos. É por isso que, quando um português de hoje lhes surge em frente, sem bigode nem barriga se espantam. Um repórter da revista "Próxima Viagem" veio a Lisboa e não escondeu o seu deslumbre por não ver "fatiotas comportadas, bigodes escanhoados ou vestidos recatados". Empolgado, acrescentou: "O que se observa são jovens europeus contemporâneos (...), iguais aos que frequentam a Côte d'Azur, na França, ou Covent Garden, em Londres." A tendência para olhar a colonização portuguesa como fonte de todos os males tem por base este preconceito. O Brasil seria, infelizmente, a História de um ramo de portugueses necessariamente retrógrados, de padres lascivos e fidalgos hedonistas e preguiçosos. As doces descrições de Gilberto Freyre para fundamentar o luso-tropicalismo e explicar a criação de um país multirracial estão hoje em recuo. Ainda há, como Carlos L. Mendonça, quem proponha uma "nova dialéctica" para levar o país a orgulhar-se do que é pela invocação do que foi. Mas a verdade é que o país vive mal com a memória.Nesta leitura interpretativa da História há um lado em que estes intelectuais concordam: o modelo de sociedade bipolar herdado da colonização permanece intacto. Nem a monarquia imperial, nem a república criada sob o lema positivista da "ordem e progresso" conseguiram abolir esta oposição e criar um Estado capaz de olhar para todos como iguais e de esquecer a velha máxima que impunha "tudo para os amigos" e "a lei para os inimigos". O muro intransponível entre os senhores do engenho e os escravos de outrora vê-se, hoje, na distância entre a oligarquia de 1 por cento dos brasileiros que controla 53 por cento da riqueza do país e a multidão de 40 por cento dos mais pobres que apenas dispõe de 7 por cento do rendimento nacional. "O Brasil não é subdesenvolvido. É injusto", sentenciou Fernando Henrique Cardoso, o actual Presidente.A linha de pensamento que une a interpretação de Vianna Moog, nos anos 50, e do contemporâneo Darcy Ribeiro tem por base uma fatalidade: o país nasceu torto, cresceu torto e hoje é muito difícil de endireitar. Em tempos, a explicação estava nas características da raça. "Não podemos, como muitos aspiram, tomar os Estados Unidos como tipo para o nosso desenvolvimento industrial, porque não temos as características superiores da sua raça", queixava-se, em 1897, o ministro da Indústria, Joaquim Murtinho. Enquanto o puritanismo saxónico da América tinha gerado uma sociedade dedicada ao trabalho e à disciplina, no Brasil alegadamente cultivava-se a licenciosidade e a preguiça.No livro "Raízes do Brasil", o historiador Sérgio Buarque de Holanda dedicou-se a procurar a herança ibérica na identidade do seu país e encontrou a sobranceria, o desleixo, a plasticidade, o espírito aventureiro, o apreço à lealdade e a preferência do ócio sobre o negócio. O imaginário do malandro, do ocioso, do senhor que mata índios e escraviza negros para viver como um nababo são explicáveis à luz deste legado. Como o são o facto de um povo minúsculo ter conseguido manter um território tão vasto e de ter pelo amor e pela força criado o maior e o mais vivo laboratório multirracial do mundo. Nos nossos dias, Portugal é ainda um mistério para a maioria dos brasileiros, que o concebem pelos relatos dos seus ascendentes ou pelos preconceitos habituais. A cultura portuguesa é para eles um enigma: conhecem Roberto Leal, ouviram talvez falar de Dulce Pontes, mas, quando ouvem Maria João cantar, não acreditam que seja portuguesa. O Nobel José Saramago é um caso raro: é apreciadíssimo, pela literatura e pela defesa contundente do Movimento dos Sem Terra. Longe, porém, vão os tempos em que o romancista Eça de Queirós era venerado pelo país, há muito que as grandes questões de Portugal deixaram de pesar no seu quotidiano. Como entre nós, o "país irmão" é uma miragem distante.

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