Hospitais do SNS já limitam acesso a remédios mais caros

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Parecer do Conselho de Ética diz que a opção de limitar acesso a fármacos é "desejável" NUNO FERREIRA SANTOs

Conselho de Ética para as Ciências da Vida abre a porta ao racionamento de grupos de fármacos que representam maior despesa para o Estado

Opresidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), Miguel Oliveira da Silva, afirma que actualmente já há "racionamento implícito" de medicamentos mais caros nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e alega que esta é uma das razões que justificam que comece, em Portugal, a discussão do eventual "racionamento ético" de vários fármacos mais caros. "Há médicos que hoje já são contactados informalmente pelos administradores hospitalares ou directores de serviço, que lhes dizem: "Fazes favor de deixar de receitar esse medicamento, que é muito caro". Os médicos auto-inibem-se. Isto acontece constantemente", relata.

A alusão ao "racionamento implícito" surge no parecer que o CNECV ontem divulgou, após Miguel Oliveira da Silva ter dado uma entrevista à Antena 1. Em vez de este tipo de controlo ser efectuado pelos médicos e decisores hospitalares à porta fechada, os conselheiros defendem um "racionamento explícito e transparente, em diálogo com os cidadãos". A forma encontrada para operacionalizar esta solução é que não parece simples.

Aprovado por unanimidade, o parecer foi pedido pelo ministro da Saúde, que quis uma opinião sobre a fundamentação ética para o financiamento dos três grupos de medicamentos que representam mais despesa para o SNS: os oncológicos, do VIH-Sida e os biológicos para a a artrite reumatóide. Os conselheiros notam que deve haver transparência nos processos de decisão e o envolvimento da sociedade civil.

Com este documento (mais abrangente do que as declarações do presidente do órgão), foi dado o primeiro passo para o lançamento de um debate delicado e complexo: devem ou não medicamentos mais caros ser racionados numa altura de profundas restrições orçamentais em Portugal? O presidente do CNECV defende que é legítima e até "claramente desejável" esta opção. E acrescenta mesmo que é necessário estudar outras limitações, por exemplo na realização de ecografias e densitometrias desnecessárias. "Não é possível, em termos de cuidados de saúde, todos terem acesso a tudo. Será que mais dois meses de vida, independentemente dessa qualidade de vida, justificam uma terapêutica de 50 mil, 100 mil ou 200 mil euros?", exemplificou na entrevista àquela rádio.

O que se pretende dizer, esclareceu ao PÚBLICO, é que os doentes devem ter acesso aos medicamentos "mais baratos dos melhores", não desperdiçando recursos, como acontece hoje. "Isto não significa que se corte nos medicamentos e se deixe morrer os doentes. O racionamento é dar com conta, peso e medida, com bom senso e razão", sustenta, notando que há um trabalho a fazer para controlar a despesa com fármacos de eficácia duvidosa em Portugal.

Mas os onze conselheiros defendem que esta discussão não se pode ficar apenas pela necessidade de contenção de custos. Querem que sejam identificadas as "desigualdades no acesso aos medicamentos pelos diferentes grupos de doentes no país. Propõem uma possível ferramenta que ajude à decisão, um modelo a desenvolver em várias fases. A primeira passa pela avaliação clínica com médicos, investigadores e comissões de farmácia nos hospitais. Segue-se depois a avaliação financeira, a cargo das administrações hospitalares, com o contributo de associações de doentes. Mas lembram que, no final, a decisão caberá sempre ao Ministério da Saúde. Todo este processo, ao contrário do que se verifica hoje, deve ser público, por exemplo através de um site.

O bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, reagiu logo pela manhã com indignação às declarações do presidente do CNECV, que classificou como "desumanas", e questionou: "Quem vai perguntar aos doentes se prescindem de viver mais dois meses porque é caro?".

"Em 2012, em Portugal, não há recursos para tratar toda a gente com todas as doenças. Por isso, o mais eticamente defensável e politicamente aceitável é discutir a questão com os cidadãos", diz António Vaz Carneiro, que dirige o Centro de Investigação de Medicina Baseada na Evidência. Sublinhando que esta é uma discussão delicada, Vaz Carneiro deu o exemplo do cancro e disse que é preciso perguntar aos cidadãos que impacto devem ter os fármacos sobre a sobrevida dos doentes. Isto foi feito na Alemanha e as pessoas responderam que deveriam prolongar a vida pelo menos entre seis meses a um ano. Agora, avisa, este debate abre "uma caixa de Pandora: qual é o mínimo, onde está a fasquia?" Em Maio passado, o secretário de Estado adjunto e da Saúde, Fernando Leal da Costa, já tinha admitido que algumas terapias de "eficácia duvidosa" usadas em alguns pacientes com cancro poderiam deixar de ser financiadas pelo SNS. Ontem, o Ministério da Saúde recusou-se a fazer comentários, alegando que acabou de receber o parecer.

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