E agora, que futuro para Macau?

10h30 - Sem benção da chuva

Macau regressou à soberania da República Popular da China e é natural que tal facto marcante nas relações entre os dois países não deixe de despertar interrogações - e inquietações - quanto à continuidade de uma certa simbiose cultural entre Portugal e a China, a que nos habituámos a olhar naquela terra distante, parte do nosso império no Oriente.A esse propósito, temos visto propalada a crença na continuidade e supremacia da herança cultural que ali deixámos, sobre o mundo chinês, que envolve, alimenta e matiza o caso intercivilizacional não-traumático que é Macau.Essa visão romanesca e irrealista revela um profundo desconhecimento sobre a singularidade da questão de Macau e o papel que pode caber a Macau na continuada afirmação da China no mundo. Nos tempos de hoje - e é disso que se trata - é impossível situar o futuro de Macau fora do contexto de para onde vai e o que pretende para si a República Popular da China no terceiro milénio.Primeiro, porque Macau foi, é e será parte integrante da China, porto do Império do Meio, portal, pequena e simbólica janela da China para o exterior.Em segundo lugar, porque não obstante o seu "status" singular Macau não é, nem tem condições para ser, um sujeito próprio de direito internacional, um agente activo no desenhar de equilíbrios, no debelar de tensões e conflitos que a região Ásia-Pacífico será palco no próximo milénio.Macau é a partir de 20 de Dezembro de 1999 uma Região Administrativa de República Popular da China (RAEM), por força da Declaração Conjunta assinada pelos Governos de Portugal e da China e da vontade do Governo chinês, expressa na Lei Básica de Macau.Macau será, assim, um parceiro, um "compagnon de route" da vizinha RAE de Hong Kong, criada em 1997, por acto soberano da China, para gozar, durante 50 anos, de um estatuto muito especial no quadro do regime socialista chinês. Estatuto que, em termos simplistas, é o que caracteriza a posição de Macau. Daí que a forma que foi encontrada para lhe assegurar uma duradoura palpabilidade é, ela própria, um exercício de inteligência, sapiência e realismo.Repudiamos essa visão onírica, mística, falaciosa, da perda de um paraíso insular, uma nova Avalon no mar da China, que os saudosos da glória imperial portuguesa insistem em associar ao fim da administração portuguesa de Macau com gritante ignorância quanto à natureza e limites da nossa presença, de 450 anos, na costa do Sudeste da China. Referimos presença e não ocupação porque Portugal, primeiro por desinteresse e depois por realismo, nunca exerceu sobre o conjunto da população de Macau o conjunto de poderes que caracteriza o exercício da soberania.O futuro de Macau está, assim, profundamente arreigado ao destino da República Popular da China e a comunidade de Macau, maioritariamente de etnia chinesa (como sempre o foi), tudo terá a ganhar com a projecção económica, comercial e política da China na cena internacional.Mas poderá, por isso mesmo, o quadro de autonomia consagrado pela Declaração Conjunta e sufragada pela Lei Básica da RAEM sobreviver por muito tempo à saída de Portugal e à inexistência de mecanismos de acompanhamento do curso político do pequeno território?Poucos se inclinarão a responder-lhe de uma forma positiva e peremptória. Até porque quer a Declaração Conjunta quer a Lei Básica falam num período de 50 anos para a sobrevivência do sistema capitalista e da maneira de viver em Macau. Mas como admitir essa perenidade, se a vontade da classe dirigente chinesa tem sido tão variável e oscilante, ao sabor de uma tradição de nepotismo e de sacralização da vontade imperial contra o primado da lei, que marcam também a história curta da Nova China?A proximidade da zona muito desenvolvida do Sul da China tem sido um catalisador da prosperidade que Macau usufruiu até ao princípio dos anos 90. Macau beneficiou, nos últimos 15 anos, da política de abertura ao exterior defendida por Deng Xiao Ping e prosseguida pelos seus herdeiros políticos.Mas trouxe-lhe, também, uma dependência estruturante dos fluxos de investimentos oriundos das vizinhas cidades de Zhuhai, Zhongshan, Sikei, isto é, da adjacente Região Económica Especial de Zhuhai da RPC. Projectando-se no "boom" especulativo da actividade imobiliária, no colapso da actividade industrial, no crescimento da indústria do turismo e divertimentos.Tal dependência poderá agravar-se no futuro, por quatro ordens de razões.Primeiro, a administração de Macau passará a ser chinesa. Isso significa uma maior disponibilidade para equacionar as questões da Região Administrativa no conjunto das várias províncias, regiões autónomas e especiais vizinhas e, portanto, para considerar os interesses da RAEM no cômputo dos equilíbrios e contrapartidas que caracterizam o jogo da política doméstica chinesa.Em segundo lugar, o poder político de Macau poderá sentir-se tentado a ser um poder subserviente com o poder central chinês, localizado em Pequim e com a superestrutura do Estado e do partido, pela falta de substrato efectivo para a autonomia de Macau e pela inexistência de uma tradição de autonomia política dos líderes da comunidade chinesa de Macau face ao poder central - ao contrário do que sempre se verificou em Hong Kong. Mas poderá ser um poder subserviente, sobretudo por dificuldades de auto-sustentação face ao poder económico emanado de Guangdong, que se manifesta já hoje na composição dos investimentos locais, nas estruturas de coordenação de infra-estruturas de transportes que o governo provincial tem implementado com a colaboração de Macau.Em terceiro lugar, Portugal não tem instrumentos para exercer uma efectiva monitorização do processo político do território, que sustentasse, por alguma forma, a vontade dos seus novos dirigentes em afirmar e alargar essa autonomia. O Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês tem uma vida precária, sobrevivendo alguns dias ao acto de transferência formal, inviabilizando qualquer pressão diplomática que Portugal entendesse exercer para garantir o cumprimento da Declaração Conjunta.Portugal tem ainda, neste capítulo, revelado um efectivo desinteresse numa presença económica em Macau e na China, sendo os investimentos actuais insignificantes no contexto dos países da União Europeia, agravado pela improbabilidade de uma comunidade portuguesa significativa em Macau, depois de 1999, em razão da descrença - fundada ou não - na sinceridade do Governo chinês quanto à preservação de um "status" social que não aceita a inevitável subalternização. Portugal não tem uma política efectiva de apoio aos núcleos portugueses de emigração na Ásia, à continuidade da nossa presença cultural. Não obstante a retórica do discurso oficial do Governo português, a acção externa de Portugal na Ásia é já um caso de história.Essa ancoragem na Grande China decorrerá de um facto sociológico incontornável: os habitantes de etnia chinesa de Macau sentem-se primeiro que tudo chineses e só depois originários de Macau e não visionam o seu futuro fora do contexto da evolução da China.A China é demasiado grande e Macau demasiado pequeno para alimentar sonhos de uma grandeza que nunca existiu senão nas estrofes dos poetas como Camões, Wenceslau ou Pessanha, que cantaram a originalidade e a riqueza da interpenetração cultural, da convivência de raças e credos, que foram a tónica da nossa presença em Macau. Não se pretende com isto sustentar que o futuro de Macau é desesperante, trágico ou sem saída, agora que cessam as nossas responsabilidades sobre o território.A qualidade da transição administrada por Portugal, a escrupulosa aplicação da letra e espírito da Declaração Conjunta são a garantia de uma obra feita e a porta que pode abrir um novo ciclo nas relações entre Portugal e a China, depois de 1999. Relações entre Estados soberanos, de culturas e identidades diferentes, mas igualmente ricas e singulares, porque fundadas no respeito mútuo, na igualdade e reciprocidade, no repositório de direitos e deveres, que é cada vez mais o património da comunidade internacional.Relações que poderão passar seguramente por Macau, mas também por Xangai e, sobretudo, por Pequim.Quando os Estados Unidos elegem as relações com a China, como o exemplifica o acordo histórico relativo à OMC, como uma das vertentes essenciais da sua política externa é um falhanço confesso da nossa política externa a incapacidade de dimensionarmos uma vertente asiática e chinesa do nosso relacionamento externo.Seguramente, a Europa e a Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa são vertentes decisivas da nossa afirmação perante o mundo. Mas seria dramático reconhecer, daqui a uns anos, que Portugal desbaratou, por incúria ou desleixo, oportunidades que outros, com menor conhecimento de terreno, abraçaram.* membro do Fórum Luso-Asiático

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