"Barroso e Guterres são os melhores para liderar a ONU"

Deixou a Presidência ao primeiro minuto da noite de 20 Maio e garante que não vai participar nas legislativas de Junho. Mas não exclui a possibilidade de entrar no novo Governo

Numa análise aos resultados eleitorais que ditaram a sua derrota nas presidenciais, o prémio Nobel da Paz diz que tinha pouca motivação para continuar na chefia do Estado, afirma que só se candidatou porque lho solicitaram muito e admite mesmo que sua candidatura foi uma espécie de passagem de testemunho antecipado e propositado. Para ele, o balanço de dez anos de independência é "altamente positivo", mas não esconde as suas preocupações com a pobreza que ainda marca o país e com a corrupção que considera "grave" em alguns sectores do Estado.

A sua janela para ser secretário-geral da ONU, se alguma vez existiu, está hoje fora de questão. Depois do sul-coreano Ban Ki-moon, será a vez de um europeu. Ramos-Horta já tem dois candidatos em cima da mesa: Durão Barroso ou António Guterres

Que retrato faz de Timor-Leste dez anos depois da restauração da independência?

O balanço em geral é altamente positivo, embora salpicado ao longo desses dez anos pelos graves incidentes de 4 de Dezembro de 2002, em que a casa de Mari Alkatiri, então primeiro-ministro, foi assaltada e saqueada na sequência de tumultos e de protestos contra o Governo. A também tristemente famosa manifestação contra o Governo, que durou um mês e foi liderada pela hierarquia da Igreja católica. E ainda a grave crise de 2006, em que quase perdi a vida. Não foram dez anos isentos de problemas. Hoje o país está tranquilo, a economia tem conhecido um crescimento de 10% em média nos últimos quatro/cinco anos, graças a uma política de coragem do irmão Xanana Gusmão.

Que política de coragem foi essa?

Exige-se coragem para investir como ele investiu. Não hesitou muito, por exemplo, em assinar a ordem executiva para o contrato com a Finlândia e a China para a electrificação do país, na ordem dos 600 milhões de dólares (472,3 milhões de euros). Se eu fosse primeiro-ministro, a caneta tremia-me nas mãos a assinar um contrato daquela natureza e muitos outros investimentos públicos, nomeadamente na área humanitária, como as pensões aos veteranos, viúvas e idosos. A oposição diz que Xanana criou um Estado providência, mas, numa sociedade como a nossa, com tanta pobreza, porque não um Estado providência?

Apesar destas ajudas, a maioria da população ainda vive na mais absoluta pobreza. Não podia ter sido feito mais?

Sim, a pobreza ainda é generalizada e devíamos tê-la reduzido muito mais. A subnutrição infantil é inaceitavelmente alta, a tuberculose continua a ser a primeira doença do país, a malária e o dengue continuam a ser doenças generalizadas. Nem tudo tem sido um sucesso, mas é preciso ver o contexto. O Fundo do Petróleo só foi criado em 2004/2005. Começou com pouco mais de 200 milhões de dólares...

Mas hoje já atingiu os cerca de nove mil milhões de dólares (7,1 mil milhões de euros).

Mais, ultrapassou os dez mil milhões. Face a tudo isto, em cinco anos não me parece que se tivesse podido fazer muito mais.

Nas ruas de Díli, nos distritos, os timorenses mais pobres continuam a perguntar para onde foi o dinheiro do petróleo.

Talvez tenha faltado uma melhor comunicação por parte do Governo para com o povo. Se eu fosse o porta-voz do Governo, diria: entre 600 e 800 milhões de dólares para a electrificação do país que o povo tanto exigiu. Mais de 100 milhões de dólares por ano para as questões sociais e humanitárias. Muito dinheiro tem ido também para a formação académica e técnico-profissional. Quando a região e o mundo sofreram com a crise alimentar, Timor-Leste não sofreu, porque o Governo comprou o que era preciso comprar para armazenar e vender ao povo a um nível aceitável. Perguntem aos velhinhos se não estão satisfeitos com os 30 dólares por mês que recebem do Estado.

É sem dúvida uma ajuda, mas não chega para que deixem a pobreza.

Obviamente que não é suficiente, mas este país pode aumentar esse subsídio para 50 dólares por mês. E digo isto porquê? Quando nós ajudamos o pobre, os velhos, eles não vão pegar no dinheiro e comprar perfumes, ou um bilhete para irem de férias para Bali. Vão comprar mais repolho, mais tomate, ovos e galinhas na sua comunidade. E as pessoas na comunidade, que vendem estes produtos e diziam que não tinham a quem vender, agora já têm. Começa a circular o dinheiro e economia local começa a desenvolver-se.

A luta contra a corrupção foi sempre uma das suas bandeiras e de muitos outros políticos timorenses. Hoje muitos dizem que a corrupção já mina o país. A ministra da Justiça vai ser julgada por acusações de corrupção. Que percepção tem do fenómeno hoje em Timor?

É grave a nível de certos sectores do Estado que gerem obras públicas, em particular a sectores ligados à electricidade, saneamento e no Ministério da Comércio, Indústria e Turismo. A situação é grave e o primeiro-ministro está consciente e tem apontado o dedo, mas, como em qualquer Estado de direito, só procurador-geral da República e os juízes podem apontar o dedo.

Dez anos depois da independência as relações entre Timor e os seus vizinhos Indonésia e Austrália parecem estar perfeitamente estabilizadas...

Conseguimos desenvolver excepcionais relações com os dois países. Não temos qualquer contencioso com eles, as relações no plano humano e no plano governamental são hoje excelentes. Feliz é aquele país que só tem bons vizinhos e Timor só tem bons vizinhos.

E o país irmão, como chama frequentemente a Portugal, que papel pode ainda ter em Timor?

País irmão, sim. Digo muitas vezes à nossa população que não seríamos livres, independentes, se não fosse a acção diplomática portuguesa, porque a nossa luta foi ganha pela via diplomática e não pela luta armada, embora mil vezes heróis são os que lutaram 24 anos nas montanhas. A vertente diplomática foi fundamental e aí Portugal foi fundamental. Eu fiz algo, mas o meu sucesso deve-se ao apoio que tive sempre de Portugal. E há algo que eu admiro muito: quando certos países conseguem uma vitória diplomática, fazem grandes celebrações, achincalham o supostamente derrotado. Portugal conseguiu uma grande vitória diplomática com a questão de Timor e, no entanto, nunca se ouviu nenhum elemento do Estado Português achincalhar aqueles que foram derrotados. Isto é muito apreciado pelos indonésios e australianos. Hoje as relações entre Portugal e Timor são de amizade e cooperação e assim vão continuar no futuro.

O que ainda não venceu em Timor foi a língua portuguesa. Apesar do enorme esforço humano e financeiro feito pelos dois países, ainda são muito poucos os que falam a segunda língua oficial do país.

Fiquei muito contente por ver uma recente estatística do Governo que apontava 20% dos timorenses a falar português. Podem não falar no dia-a-dia, mas se pegam num jornal em português e ouvem rádio entendem a língua. Acredito que nos próximos dez anos esse número pode chegar aos 50%. Será um português timorense, muito criativo, com muitas palavras novas inventadas pelo meio. Por outro lado, o tétum está a ser enriquecido pelo português. Às vezes farto-me de rir, quando estou a ler um texto supostamente em tétum, e 80% são palavras portuguesas.

O português está a mudar o tétum?

Sim. Por exemplo, a palavra "chefe" foi adaptada para tétum pelos timorenses, que escrevem "xefi" e reclamam que isso é tétum. Vejo um cartaz na rua e digo para mim mesmo: estão ali seis palavras e só uma é em tétum. Portanto, está a invadir muito rapidamente o tétum. Daqui a dez, 20 anos vamos ter um português moderno e um tétum impregnado de português. O português aqui não tem de ser o de Lisboa; eu, quando ouço um madeirense, um açoriano ou um algarvio falar, percebo metade. Agora, o português podia avançar muito mais rapidamente em Timor, se a RTP, que eu vou homenagear pelo muito que fez pela luta [de independência de Timor-Leste], fosse mais dinâmica, mais criativa e interessante, como é a TV Globo.

O que não lhe agrada na emissão da RTP (os timorenses têm acesso à emissão da RTP Internacional que alterna ao longo do dia com a Rádio e Televisão de Timor-Leste)?

A RTP tem de ser uma televisão para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa [CPLP]. E até pode ter a contribuição financeira de alguns países e ter produções em comum com as televisões locais. É difícil convencer a TV Globo a fazer isso, mas a RTP é para Timor como a Voz da América é para os Estados Unidos, como a BBC é para Inglaterra. A emissão internacional da RTP tem de ser repensada, até em Portugal, porque parece que a sua audiência está a diminuir, e olhar para os que a vêem fora de Portugal. Sem ofensa para o senhor Baião [João Baião, animador de programas da RTP], que eu nunca vejo na televisão. Mas volta e meia ligo a televisão e lá está ele com a sua palhaçada completa. Provavelmente os portugueses na Suíça gostam dele, mas Portugal tem coisas mais interessantes para mostrar ao mundo do que o Baião e outros tantos que não prestigiam a RTP.

Vai deixar agora a Presidência da República depois de ter perdido as eleições do mês passado. Que reflexão faz hoje sobre esse resultado eleitoral?

Quando anunciei a minha candidatura, afirmei que não faria campanha, disse que entrava na corrida apenas porque me solicitaram muito. Nas poucas ocasiões em que intervim durante a campanha foi para falar bem dos candidatos nos quais eu acreditava.

A sua candidatura não tinha como objectivo vencer? Era uma espécie de passagem de testemunho antecipado e propositado?

Propositado. Sobretudo em relação a Taur Matan Ruak e Lu Olo, homens que estiveram 24 anos na mata. Eu, já em 2007, quando Xanana me empurrou para a corrida à presidência contra o Francisco Guterres Lu Olo, senti-me muito mal. Eu disse ao Xanana antes da última eleição: vou-me candidatar outra vez contra o Lu Olo, ainda mais agora com o Taur Matan Ruak na corrida?

Também teve um papel importante na luta a nível diplomático.

Sim, extremamente importante, mas andar em Nova Iorque, em Lisboa ou Paris não era o mesmo que andar no mato, sempre em risco de vida e sem comida. Eu não sei se teria aguentado 24 anos como eles aguentaram. Por isso, Taur Matan Ruak tem todo o meu respeito, admiração e amizade. Estou tranquilo.

Durante os anos da luta e após a independência Ramos-Horta e Xanana Gusmão foram sempre aliados fiéis. Desta vez Xanana não o apoiou, colocando-se ao lado de Taur Matan Ruak. O que se passou?

Os brilhantes analistas e especuladores, que não estão sentados nas salas onde falo com o Xanana, dizem muita coisa, mas, na verdade, não sabem o que se passa. Por exemplo, antes da eleição eu já lhe tinha dito mais de uma vez: irmão, já estou sem vontade para continuar mais cinco anos. Ele queria que eu continuasse presidente e, para me encorajar, dizia que eu tinha feito um bom trabalho e que nos próximos cinco anos não tinha de me preocupar com a questão interna, e que iríamos ter um grande orçamento para a acção internacional. Numa outra conversa ele dizia: "Se não está motivado para continuar, é grave." Não estando motivado como seriam os próximos cinco anos? Iria ser desleixado, indiferente.

Essa sua corrida para perder foi "combinada" com Xanana Gusmão?

Não foi combinada, mas ele sabia que eu não era um candidato com vontade. Havia um candidato nada motivado, e dois candidatos supermotivados, o Lu Olo e o Taur Matan Ruak. No CNRT [partido de Xanana Gusmão] havia já muita gente a apoiar o Taur Matan Ruak e ele tinha também de o apoiar.

A amizade entre os dois continua viva.

Sim, claro. Ainda amanhã vou estar com ele. Há duas semanas levei a sua esposa e o três miúdos a passear, porque o Xanana não tem tempo. Às vezes até brinco com os miúdos e pergunto: Então? O vosso pai ainda está a fazer política? Vêm várias vezes aqui para casa e a primeira coisa que fazem é correr para o frigorífico a ver se tem chocolate. Depois vão brincar com as outras crianças do bairro e já não me ligam nenhuma. São umas crianças maravilhosas, uma simpatia, inteligentes. Gosto muito das crianças. Tenho uma óptima relação com o casal.

Os jornais timorenses têm especulado sobre a possibilidade de se aliar a Lasama Araújo e integrar a listas do Partido Democrático nas legislativas de Julho.

Podia entrar em várias listas partidárias, mas não o vou fazer, este país não tem ninguém neutral. Já várias pessoas me pediram encarecidamente para não entrar em nenhum partido.

Disse recentemente que há vida para além da presidência. Essa vida é a da figura independente dos partidos?

Sim. Uma figura independente e apaziguadora. Tentar fazer a ponte com todos para serenar os ânimos. É o que todos me pedem. Nunca dizendo não à possibilidade de contribuir para o próximo Governo.

Não exclui a hipótese de integrar o novo Governo?

Não. Terei de ver qual é a constelação política, quem é o primeiro-ministro, quem é quem e qual a agenda. Não excluo a hipótese de entrar no Governo, ou em alguma instituição a ser criada que, por exemplo, promova a adesão de Timor na ASEAN [Associação das Nações do Sudeste Asiático], porque só temos uma janela de oportunidade de entrada que é em Novembro 2013. Se não tivermos condições para entrar até lá, temos de esperar mais cinco anos.

Em tempos o seu nome também chegou a ser referido para ocupar o cargo de secretário-geral da ONU.

Se alguma vez isso foi possível, hoje está fora de questão, porque depois de Ban Ki-moon será a vez de um europeu. E na Europa defenderei acerrimamente dois candidatos: Durão Barroso ou António Guterres. Em termos de qualificações, não vejo ninguém na Europa que possa bater Barroso ou Guterres.

A missão da ONU vai colocar fim à sua missão Timor no final do ano. Preocupa-o essa saída?

Não. Apenas temos de manifestar a nossa gratidão pela contribuição exemplar que as Nações Unidas tiveram na estabilização do país. Espero é que o próximo Governo concorde comigo para que seja feito um acordo bilateral com Portugal para manter aqui uma companhia robusta da GNR, já a expensas de Timor, no mínimo dois a três anos. Devem continuar a formação que estão a fazer e intervir, caso seja necessário. É melhor jogar pelo seguro. Toda a gente gosta da GNR, a não ser os malfeitores, esses temem-na.

Como espera ver Timor daqui a dez anos?

Um país de desenvolvimento médio/alto, em que a pobreza, a malária, a tuberculose deixaram de existir. Um país com uma população alfabetizada, sem desemprego e com uma grande cultura democrática, de tolerância e solidariedade. Isto não é um sonho, é possível. Timor é possível.

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