“Se o Cyril não continuasse, seria eu a aposta principal para o triunfo”

Em entrevista ao PÚBLICO, Rúben Faria lembra alguns dos episódios mais dramáticos que levaram a uma história conquista de um segundo lugar no Dakar.

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Ruben Faria prefere a versão sul-americana do Dakar e quer ter uma oportunidade de lutar pela vitória Bruno Rascão

Enquanto Cyril Despres tivesse uma possibilidade real de conquistar o seu quinto Dakar, Rúben Faria nunca seria um candidato ao troféu. No final, o piloto algarvio cumpriu, com lealdade, a missão, contribuindo para a vitória do líder da sua equipa. Agora, após o segundo lugar na prova, a ambição aumentou e gostaria de ter uma oportunidade real para alcançar o primeiro lugar do pódio.

Sentiu-se frustrado por estar limitado à luta pelo segundo lugar no Dakar?
Desde 2010 trabalho com o Cyril Despres [chefe de fila de Rúben Faria e vencedor das últimas duas edições do Dakar], tenho os meus objectivos na equipa [KTM Red Bull] bem delineados e não trabalho para vencer o Dakar, mas sim para fazer o melhor possível dentro das minhas capacidade e ajudar o patrão da minha equipa. Este ano, queria mesmo que o Cyril vencesse o seu quinto Dakar e o terceiro com o meu apoio. Sinto que uma parte da vitória dele também é minha.

Alcançou e superou os seus objectivos à partida…
O Dakar começou a correr bem logo de início, sem percalços nenhuns. Cheguei ao dia de descanso [a meio da prova] no segundo lugar, mas não entrei em euforias, nem mudei a minha maneira de pensar. Também não recebi ordens da equipa para alterar o meu comportamento.

Tudo decorria normalmente até que houve um dia, numa etapa maratona, em que o Cyril Despres partiu atrás de mim e eu acabei por esperar dois minutos por ele. Acabou por passar-me e eu segui atrás, até ele ganhar alguma distância. Depois de 10 ou 15 quilómetros vejo pó à minha frente e o blusão do Cyril. Fiquei preocupado e não o queria ultrapassar. Ele olhou para trás e quando se apercebeu que era eu, chamou-me para ficar ao seu lado. Fez-me o sinal de que tinha problemas na sua caixa de velocidades e não conseguia meter a quinta. Pensei que iríamos parar e tentar reparar a moto, mas ele disse para eu continuar e não quis ajuda. Hesitei, mas perante a insistência dele segui. Senti-me mal, porque não estava preparado para deixar o meu patrão para trás, mesmo sendo ele a mandar-me passar.

Andei muito bem o resto da etapa e acabei por fazer o segundo lugar. Essa especial maratona era dividida por dois dias e, pelo meio, não haveria assistência. No final, passou-me tudo pela cabeça, inclusivamente que o Cyril iria pedir o motor da minha moto.

Se o Cyril não continuasse, seria a aposta principal da sua equipa para o triunfo?
Sem dúvida, mas o Cyril acabou por chegar ao final dessa etapa, mesmo só andando em quarta velocidade. Perdeu algum tempo, mas recuperável. Como excelente piloto que é, nunca desiste e o facto de já ter sido mecânico foi fundamental. Disse-me: “Ruben, vou ter de trocar de motor”. Eu respondi-lhe de imediato: “Ok, então vamos tirar o meu”. Ele foi pragmático e recusou, disse que não aceitava o meu motor. Lembrou-se de um amigo dele, um polaco que estava a correr com uma lesão no ombro, que não se importou de lhe ceder o motor.

Os dois desmontámos a moto e trocámos o motor. Foi o Cyril que o fez praticamente sozinho, enquanto falava com o mecânico ao telefone. Dormimos pouco, dentro de um pavilhão, no chão, e quase não comemos. Foi um dia de emoções muito fortes e duro psicologicamente. No dia seguinte [na segunda parte da etapa maratona], o Cyril recuperou rapidamente o tempo perdido, ficando novamente na luta pela vitória.

Chegou a sonhar com a vitória nessa altura?
Nunca perdi a cabeça e tenho uma grande lealdade para com Cyril. Muita gente pensou que eu estava bem lançado para ganhar o Dakar, mas não sabem o que se passa no interior da prova, dentro da equipa. Se ele tivesse perdido duas horas e ainda insistisse em lutar pela vitória, seria uma coisa diferente. Aí, se calhar, discordava e tentava alertar a equipa para o absurdo desse pedido. Mas não foi assim, o tempo que ele perdeu era perfeitamente recuperável, ainda mais faltando tantos dias para o final. Além do mais, ele recusou o meu motor para salvaguardar a equipa, permitindo que me mantivesse na corrida pela vitória, se acontecesse alguma coisa à sua moto. Uma atitude que eu agradeci.

O que falhou com Hélder Rodrigues e a Honda que criaram grande expectativas ao início da prova?
 A Honda deve ser a maior construtora mundial de motos e quando entra numa prova destas é para ganhar. O Hélder tinha feito dois terceiros lugares consecutivos nos dois anos anteriores e é um piloto bastante rápido. Em 2010, se me perguntassem se ele iria vencer o Dakar, eu ainda tinha as minhas reservas, mas neste momento já não tenho. Continuo a dizer que o Cyril e o Marc Coma [piloto espanhol, que não participou este ano no Dakar, devido a lesão] são muito fortes, mas há imponderáveis. Para mim, o Hélder já é um piloto que pode vencer. Não sei exactamente o que aconteceu este ano, mas ele estava a correr numa moto jovem ainda [a Honda regressou este ano a esta competição, após uma ausência de 25 anos].

Esperavas um domínio tão grande da KTM?
 Não. Achei que iríamos ter mais concorrência. Não esperava todo este domínio. O certo é que a KTM continua a ser a moto mais fiável e a ter os pilotos mais experientes.

Como é a sua relação com Cyril Despres?
 Ele é um piloto que agradece e reconhece o contributo que eu presto para as suas vitórias. Tem o seu feitio. Defende muito a verdade, a razão e, essencialmente, o profissionalismo. Muitas vezes chateia-se comigo porque há coisas que não correm bem. Nós em Portugal não somos obcecados pela perfeição e ele é. Pela perfeição, pelo método e pelos horários. Muitas vezes, por coisinhas pequenas, ele chama-me à razão. Por estes motivos, muita gente diz que o Cyril é antipático, mas é a sua maneira de ser e, no fim, costuma ter razão.

Todos dizem que o Ruben Faria é um “mochileiro” de luxo para Cyril?
 Antes de tudo, tenho de lhe agradecer por ele me ter levado ao Dakar numa altura em que eu não teria hipóteses de regressar a essa prova. Em 2009 e 2010 foram anos maus, estive parado devido a uma lesão e não consegui arranjar patrocínios. Foi ele que me ajudou e acabei por voltar ao Dakar.

E a partir de agora, vai continuar com Cyril?
Falámos logo no final do rali. No dia em que íamos para o pódio, entrámos no táxi e ele prontamente me disse: “Ruben, agora que ganhaste asas o que estás a pensar fazer?”. Respondi-lhe que precisava de algum tempo para pensar. Disse-lhe também que este segundo lugar tinha mexido comigo e não sabia se, inconscientemente, poderia condicionar o meu trabalho. Anteriormente, se fosse necessário esperar duas horas por Cyril, eu esperava, agora não sei. Se ficar, espero bem que o consiga fazer.

Mas o futuro será sempre na KTM?
 Julgo que sim, mas ainda não falei com eles. Acho que fiz o meu trabalho muito bem feito e penso que eles podem contar comigo e eu com eles.

Ter três portugueses entre os dez primeiros é motivo de orgulho para o motociclismo nacional…
 Só tenho de dar os parabéns aos meus colegas. Um país como Portugal a meter três pilotos no top 10 de uma prova destas... Temos de estar todos orgulhosos por aquilo que foi feito, mesmo nos carros com o Carlos Sousa [sexto qualificado] e com os co-pilotos nacionais que participaram também com mérito.

Este segundo lugar pode atrair apoios e patrocínios portugueses?
 Nesse aspecto, sinto uma tristeza enorme. Os responsáveis da equipa da KTM são austríacos e ficam admirados por os patrocínios que exibo na minha camisola não serem portugueses, mas sim franceses. São patrocínios pessoais, mas no nosso país não consigo preencher estes dois espaços a nível institucional ou privado. Tive apenas, durante dois anos, o patrocínio da Região de Turismo do Algarve, mas cabaou.

Tem 38 anos, em quantos Dakar pensa ainda participar?
 Este foi o meu sexto. Sei que já não sou novo, mas não estou cansado e penso que posso fazer uns quantos.

Concorrer de carro não é uma alternativa?
Não, pelo orçamento que envolve. Já o Cyril Despres e o Marc Coma também não conseguem passar para os carros pelos mesmos motivos. Há poucas marcas a concorrer e os orçamentos são demasiado pesados, comparativamente com as motos. Agora, sem dúvida, um dia gostaria de passar para os carros.

O todo-o-terreno português está a desenvolver-se e a atrair novos praticantes?
A nível amador, cada vez há mais, mas os inscritos na Federação [Portuguesa de Motociclismo], que participam nas provas nacionais, são cada vez menos. É um desporto caro.

Como piloto, quais são as principais diferenças que distingue a corrida em África e na América do Sul?
Prefiro a América do Sul. Em África, o Dakar era 80% aventura e 20% competição. Na América do Sul, passa-se exactamente o contrário. Se a ideia é andar 500 quilómetros e não se ver vivalma, o ideal é a prova africana, agora a versão americana conta com a assistência de milhares de pessoas e isso dá-me mais prazer como piloto. Ouvir gritar: “Faria, go, go!”.

A América do Sul está rendida ao Dakar?
Está completamente rendida a esta prova e já se fala em outros países que querem também receber o Dakar, como, por exemplo, a Bolívia.

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