“Se o Cristiano Ronaldo do Brasil for o mesmo da África do Sul a selecção terá menos chances”

Carlos Queiroz, seleccionador do Irão, lamenta o comportamento que CR7 teve consigo no Mundial 2010 e avança que irá abandonar o Irão para abraçar um novo projecto em África.

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Carlos Queiroz, actual seleccionador do Irão, mantém um olhar atento sobre a selecção portuguesa Behrouz Mehri/AFP

Carlos Queiroz está empenhado em entrar para a história como o único treinador a apurar quatro selecções de países diferentes para fases finais de mundiais. No final do torneio do Brasil, o continente africano será o seu próximo destino. Em entrevista exclusiva ao PÚBLICO nas vésperas da estreia do Irão no Mundial frente à Nigéria (0-0), o técnico, de 61 anos, revela alguns pormenores das suas passagens pelo Real Madrid e Sporting, conta o seu papel na transferência milionária de Cristiano Ronaldo para a capital espanhola e recorda as dificuldades que enfrentou na preparação do Irão.

Como está correr o Mundial para o Irão?
Estamos aqui numa espécie de jogo de xadrez. Por um lado temos de trabalhar no equilíbrio da equipa para as exigências de um Mundial; por outro as condições físicas, atléticas e mentais dos jogadores não permitem ir muito longe. Mas a preparação correu de acordo com aquilo que tínhamos planeado, dentro das circunstâncias que envolvem actualmente o país. Acabámos por fazer apenas quatro partidas particulares, mas dadas as limitações financeiras relacionadas com sanções económicas internacionais [com muitas selecções a recusarem convites para jogos de preparação] e as dificuldades que atravessa a federação, tivemos de nos sujeitar à disponibilidade de alguns ‘amigos’. E mesmo assim foram os meus contactos pessoais nos bastidores que levaram a Angola, Montenegro, Bielorrússia e Trinidad e Tobago a disponibilizarem-se a jogar connosco sem grandes custos. É a realidade que temos.

É visto como um autêntico herói no Irão…
O futebol tem estas magias de transformar as pessoas em heróis. Os resultados provocam esta ilusão como muitas vezes provocam o contrário. Eu continuo a ser o mesmo, mas estou realmente orgulhoso e satisfeito. Diria até que foi o trabalho mais difícil que tive na minha carreira. Foi preciso tirar tudo o que tinha dentro de mim para chegarmos aqui. Estarmos no Mundial não foi o resultado de um prémio. Trazer uma equipa praticamente de jogadores amadores para uma prova destas, altamente profissional, com as exigências do futebol moderno, foi muito difícil. Foi uma aventura. Em pouco mais de três anos fizemos mais de 50 jogos, perdemos apenas seis vezes e chegámos ao primeiro lugar do ranking da Ásia. Mas a posição nesta tabela não é uma verdade desportiva, pois o Irão está longe do Japão e da Coreia do Sul.

Foi buscar alguns jogadores mais experientes e ‘naturalizar” outros nascidos fora do Irão. Acrescentaram algo à selecção?
Sim, trouxeram alguma vivência internacional à equipa. Mas, mesmo assim, aos olhos dos analistas, é quase sempre irrealista imaginar sequer a qualificação do Irão para a segunda fase do Mundial. Quando abordam o nosso grupo no Brasil, nem da nossa selecção falam, parece que não conta para este campeonato. E não lhes posso levar a mal, porque, honestamente, é uma equipa de amadores dentro e fora do campo. Tem alguns jogadores que alinham no futebol profissional da Europa, mas em equipas de segunda linha. Na selecção iraniana não há um único elemento que tenha participado alguma vez na Liga dos Campeões.

E é irrealista esse objectivo?
Sabemos que vamos jogar contra três equipas poderosíssimas [Nigéria, Argentina e Bósnia] e se eles nos derem uma oportunidade temos de estar preparados para a aproveitar. Vamos saber sofrer, deixar a pele dentro do campo e, nos momentos certos, tentar contra-atacar, usar os espaços e rematar para tentar o golo. Tudo com uma mentalidade sempre positiva. Estamos aqui para disputar o nosso campeonato e quando ele acabar passaremos para outra fase da evolução da equipa. O que posso dizer é que não foi fácil agarrar nos meus jogadores e convence-los que podem voar. O meu trabalho foi fazer-lhes sentir que, juntos e unidos, podem criar um verdadeiro espírito de equipa. Vamos ver se conseguimos sustentar isso durante os 90 minutos de cada jogo deste Mundial.

Há uma grande euforia no Irão pela participação neste Mundial?
É um país em que o futebol está no ADN das pessoas. É uma loucura total e uma paixão para todos os iranianos. Está-lhes no sangue. Os grandes derbies esgotam estádios com cem mil espectadores. Cada jogo da selecção tem uma audiência televisiva de 35 a 50 milhões de telespectadores. Se o Irão marcar um golo no Brasil, milhões de pessoas vão festejar nas ruas. Para mim, como treinador, é muito gratificante deixar este legado técnico na selecção. Chegámos a este Mundial e qualificamo-nos para a Taça da Ásia, com o primeiro lugar do grupo. Vou deixar o Irão num lugar melhor lugar do que aquele que encontrei.

Parece um discurso de despedida…
Sim, termino aqui [no Mundial] o meu vínculo. Houve uma fase de ‘namoro’ em que o Irão chegou a propor-me a continuidade e continuam a demonstrar essa vontade. Mas não há apoios suficientes do Governo e, parece-me claro, que deixou de haver um interesse efectivo, por falta de condições financeiras, para manterem o trabalho desenvolvido ao nível das selecções. O diálogo foi cortado e eu já decidi que não vou ficar.

Aconselhou-se com Ferguson, Mourinho e Capello para preparar o Irão?
Tenho uma relação muito próxima com eles, especialmente com Ferguson. Falámos muito, em especial da experiência deles com equipas mais pequenas. Falei também com o ‘Bora’ Milutinovic, que treinou os EUA, Nigéria e China, países que foram também ‘outsiders’ nestas competições.

Sente-se orgulhoso por ser o treinador português mais experiência em mundiais?
Por um lado orgulhoso, por outro preocupado. Já me vejo como um dos últimos dinossauros da velha guarda [risos]. Talvez comece a ser tempo de pensar em arrumar as botas e dar lugar aos novos. Tenho 61 anos agora, mais de 30 de carreira e, por vezes, o que é difícil não é ter sucesso, mas sim mantermo-lo. Tive a sorte, o privilégio, esforço e humildade de quando as coisas se tornaram difíceis para mim em Portugal, fazer as malas e procurar o sucesso onde havia trabalho. Nunca considerei nenhum trabalho desonroso. Estive nos MetroStars [EUA], fui para o Japão [treinar o Nagoya Grampus Eight], depois estive nas selecções dos Emirados [Árabes Unidos] e da África do Sul.

Os seus planos passam pela reforma?
Sinto-me muito bem ainda. Talvez a minha próxima opção profissional tenha em mira tornar-me no primeiro treinador a classificar quatro selecções diferentes para o Mundial [já o conseguiu com a África do Sul, Portugal e agora o Irão]. Nunca nenhum técnico fez isso e apenas três treinadores qualificaram três equipas diferentes para esta competição.

Será tão complicado como o Irão?
Não é tão difícil pela selecção em causa, que tem muitos jogadores a actuarem em equipas das primeiras divisões europeias, mas é complicado porque será num ambiente africano extremamente competitivo. É muito difícil uma qualificação neste continente para um Mundial. Mas não posso adiantar já o nome da selecção e ainda não tenho a decisão totalmente tomada.

Está fora de causa voltar a treinar um clube?
Não e até tive uma proposta para ficar aqui [Brasil] e uma outra para ir para Inglaterra. Mas circunstâncias da minha vida privada, tornam difícil que eu possa, nos tempos mais próximos, aceitar um projecto num clube.

Arrependeu-se de alguma decisão na sua carreira?
Sempre fui bastante atrevido e aventureiro nas minhas decisões.

Sair do Manchester United para o Real Madrid em 2003-04 foi um erro?
O Ferguson [antigo treinador do United, onde Queiroz era técnico adjunto e com possibilidades de assumir o cargo principal] tentou pedir-me para não aceitar. Ele conhecia bem a realidade do clube, mas quando o Real Madrid aparece na vida das pessoas, a primeira coisa que fazemos é dizer que ‘sim’ e só depois é que pensamos. É provavelmente o clube mais atractivo do mundo para um treinador, mas extremamente complexo, devido à sua grandeza. Mas nenhum treinador do mundo pode recusar e, para dizer a verdade, as coisas foram mais simples para mim do que as pessoas possam imaginar. A relação com os jogadores foi óptima e jogámos sempre um futebol espectacular.

O que correu mal?
Infelizmente não consegui alertar o presidente [Florentino Perez] que as decisões que estava a tomar eram profundamente erradas, nomeadamente ao nível da gestão de jogadores importantes. Deixou sair [Claude] Makélélé [antigo médio defensivo] para o Chelsea por uma questão de 600 mil euros. Era um jogador crucial para a equipa. Teve um custo efectivo de milhões para o clube. Houve decisões prepotentes do presidente. Se ele me tivesse ouvido, o Cristiano Ronaldo tinha sido contratado mais cedo e por um preço muito inferior aquele que foi pago mais tarde pela sua transferência. O mesmo aconteceu com o Pepe. Acabei por ficar sozinho, mas, depois de mim, quantos treinadores caíram a seguir no Real Madrid?

Que memória tem da sua passagem pelo Sporting [único clube que treinou em Portugal]?
Sei bem qual foi o Sporting que encontrei quando cheguei [orientou os “leões” entre 1993 e 1995]. A equipa já não ganhava nada há alguns anos e terminava os campeonatos longe dos primeiros lugares. Na minha primeira época [rendeu o inglês Bobby Robson, na temporada 1993-94] terminámos a três pontos do Benfica [que foi campeão] e fomos à final da Taça de Portugal com o FC Porto [o Sporting foi derrotado na finalíssima, por 2-1, depois de um empate a zero no primeiro jogo]. No segundo ano [1994-95] disputámos o campeonato todo contra o FC Porto e ganhámos a Taça de Portugal. Tudo com imensas dificuldades, porque naquele tempo é que se podia falar do sistema e era difícil ser treinador do Sporting. Era muito complicado jogar naquelas circunstâncias, mas isso ficará para um livro de memórias que venha a escrever.

Tem tudo resolvido com a Federação Portuguesa de Futebol [FPF]?
Tudo. Com a federação não tenho nenhum problema, pelo contrário. O que aconteceu [processo litigioso após a FPF lhe ter rescindido o contrato com o seleccionador no final do Mundial de 2010, por quebra de confiança] foram incidentes de pessoas que estavam envolvidas com a instituição. A FPF é a minha casa, onde nasci para o futebol.

Ainda está magoado com Cristiano Ronaldo que o responsabilizou após a eliminação no Mundial de 2010?
Não, estou absolutamente distanciado e indiferente. Nem eu nem ele devemos nada um ao outro. Fui seu treinador e amigo dentro e fora do campo. A decisão da sua transferência do Manchester United para o Real Madrid foi tomada em minha casa, em Lisboa, na minha sala de estar, ao lado da minha família. Pedi ao Ferguson para vir a Portugal para ser resolvido pacificamente o impasse nas negociações. Senti que era a minha obrigação como amigo e treinador e não me arrependo. Agora, se o Cristiano, num determinado momento da sua vida, entendeu que devia actuar comigo daquela forma, apesar de não esperar, tenho de respeitar. Não me move nada contra ele, mas continuo a pensar que não foi um comportamento oportuno, ajustado e adequado à posição dele como capitão da selecção. Sinceramente, não gostei e seria hipócrita se dissesse o contrário. Ele, provavelmente, entendeu que era aquilo que eu merecia na altura. Só ele o poderá dizer, nunca mais tivemos contactos.

A goleada da Holanda à Espanha (5-1) significou o enterro do tiki-taka?
Espero que não tenha sido o fim desse conceito de futebol que encantou e maravilhou o mundo. Não pode ter acabado. Como todas as coisas na vida, nenhum estilo de futebol pode ficar parado e, amanhã, o tiki-taka evoluirá para outro nível. Estes desaires são fracturas no sucesso e a Espanha vai ter de se saber regenerar para uma plataforma superior. Já se sentia que eram necessárias adaptações desde a Taça das Confederação [em 2013, em que a Espanha foi derrotada pelo Brasil, na final, por 3-0]. A minha experiência de vida no futebol leva-me a contrariar a máxima que aconselha a não mexer em equipa que ganha. Isso é uma das maiores mentiras que se instalou. Penso exactamente o contrário: quando se está no topo de um estilo de jogo, deve mudar-se, mas sem alterar os princípios. Evoluir é um factor da natureza humana e da sociedade.

Em que patamar está a selecção portuguesa [a entrevista foi feita antes da partida com a Alemanha, em Salvador]?
Eu gostei dos jogos de preparação. A equipa está sólida, confiante e sobretudo tem uma grande virtude: tantos os jogadores, titulares ou suplentes, conhecem a sua função e o seu papel em campo. Mas a história das grandes equipas mundiais é sempre feita de grandes jogadores e uma estrela. Quero dizer com isto que Portugal não pode pensar em ter sucesso com o “não” Cristiano Ronaldo do Mundial de 2010. Se jogar como jogou com a Espanha, nos oitavos-de-final [em que Portugal foi eliminado por 1-0], onde não fez um sprint nem um drible, será mais complicado. Para Portugal chegar longe no Brasil, precisamos da melhor versão de Ronaldo. Só ele poderá fará a diferença, mas se se exibir como na África do Sul teremos menos chances. Espero que esta lesão não o afecte em termos de rendimento.

Quem são para si os grandes favoritos ao título?
No final, os “dinossauros” vão seguir em frente na prova e deverão chegar longe. A Alemanha, Holanda, Brasil e Argentina são os principais candidatos e, depois, irá aparecer um outsider. Espero que, numa primeira linha, esteja Portugal, mas pode também ser uma selecção africana ou a Bélgica.

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