Quase uma década depois, os red rebels continuam a ser rebeldes

Criado em 2005 por um grupo de adeptos do Manchester United como forma de protesto contra a entrada dos Glazer, o FC United of Manchester está quase a inaugurar o seu próprio estádio.

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O FC United of Manchester nasceu em 2005 e já teve três promoções em nove anos Phil Noble/Reuters
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Karl Marginson foi o único treinador que o clube conheceu até à data PHIL NOBLE/REUTERS

É uma questão de semanas, talvez de dias, até que o Broadhurst Park possa ser considerado um estádio de futebol. Para já, ainda é um estaleiro, cheio de máquinas e lama, numa zona residencial com vivendas. Não faltará muito para que Manchester passe a ter mais um estádio, a juntar aos mundialmente famosos Old Trafford, do Manchester United, e Etihad, do Manchester City. Este fica em Moston, na zona norte da cidade, e está ao lado de uma escola, não tem uma gigantesca loja de <i>merchandising</i>, nem estátuas a posar em permanência para as fotos dos turistas. Não faltará muito até que o Football Club United of Manchester, os <i>red rebels</i>, tenha a sua própria casa.

É o outro United de Manchester, aquele que não é um dos clubes mais ricos do mundo, aquele que não é mundialmente conhecido. É pequeno, de recursos limitados, quase ninguém o conhece e a sua história não chega a uma década. O Manchester United existe tranquilamente sem o United of Manchester, mas o United of Manchester não podia existir sem o Manchester United. Não são rivais, mas são opostos. Um é propriedade de uma multinacional estrangeira, o outro é uma espécie de cooperativa de sócios, em que todos têm o mesmo poder de decisão. E isto, diz Andy Walsh, o general manager, é o que um verdadeiro clube de futebol deve ser.

“O que é importante é que um clube se mantenha fiel ao desporto. Neste momento, vergam-se demasiado em favor do negócio. Tem de ser sobre futebol e tem de ser um clube, não sobre o negócio. O negócio tem de ser um meio, não um fim”, diz ao PÚBLICO Andy Walsh, desde a primeira hora ligado ao United of Manchester, clube formado em 2005 por adeptos dissidentes dos red devils como forma de protesto contra a tomada de poder por parte dos Glazer, em Old Trafford. Walsh e milhares de outros adeptos bem tentaram impedir o negócio, com manifestações nas ruas desta cidade do Norte de Inglaterra e apelos às altas instâncias do futebol inglês. Até houve um telefonema a Alex Ferguson, mas nada resultou.

“Essa foi a última cartada. Sabíamos que o suporte financeiro para o negócio dependia da continuidade de Alex Ferguson. Liguei-lhe, disse-lhe quem éramos e pedi-lhe que se demitisse. Expliquei-lhe que se ele se demitisse o negócio com os Glazer iria por água abaixo. Ele compreendeu, mas entendeu que não se podia demitir por causa de todas as pessoas que ele levou para o clube. Eu disse que era uma coisa de curto prazo e que ele iria voltar ao clube quando o negócio fosse por água abaixo, porque tínhamos gente para assumir uma posição maioritária no clube”, recorda Andy Walsh. Sir Alex, o treinador que conquistou dezenas de títulos, preferiu continuar no United com os Glazer e os descontentes resolveram formar um clube novo.

Quase dez anos depois, o Football Club United of Manchester (FCUM) vai crescendo à medida das suas possibilidades, mas com uma filosofia que não podia ser mais distinta da dos seus vizinhos ricos da cidade. Desde que começou a competir, o FCUM já conseguiu três vezes subir de divisão, tem crescido em número de sócios e a assistência dos seus jogos em casa é a maior do seu escalão, o sétimo na hierarquia do futebol inglês – com uma média de 1874 espectadores por jogo, o FCUM tem mais gente nos seus jogos em casa do que três equipas da I Liga portuguesa (Penafiel, Moreirense e Arouca) e tem mais público do que todas as equipas da II Liga.

Oferta milionária rejeitada
O FCUM é dos adeptos e cada um dos donos tem igual peso nas decisões, não importa o volume de participação. Conta Andy Walsh que tem havido muitos interessados em investir “a sério” no clube, mas que estes “mecenas” recuaram porque o o clube não abdicava da sua gestão democrática. “Vocês não estão a perceber, é muito dinheiro mesmo”, foi o que disse um desses investidores. Mas a resposta foi que mais dinheiro não garantia mais poder. “Muito do que temos feito teria sido atingido mais cedo, se tivéssemos aceitado esse dinheiro. Mas não queremos fazer as coisas depressa, queremos fazer as coisas bem.”

Há poucos meses, a BBC fez uma comparação entre os dois United e os resultados são reveladores. O bilhete de época mais barato para Old Trafford custa 532 libras (680 euros) e um bilhete de adulto para cada jogo custa 31. Para o FCUM, 100 libras dão para toda a época e oito é o que se paga para ver um jogo. Em termos de receitas, os red devils têm mais de 430 milhões de libras e uma dívida a rondar os 340 milhões, enquanto o FCUM tem proveitos pouco acima do milhão, mas zero de dívida.

Depois de os Glazer entrarem no United, Andy Walsh foi um dos cerca de 2000 adeptos contestatários que deixaram de ir a Old Trafford e deixaram de comprar merchandising do clube, para se dedicarem ao outro United. Mas foi uma separação difícil, porque a relação era muito forte. O pai começou a levá-lo ao futebol (não só aos jogos da equipa principal, mas também aos dos escalões de formação e das reservas) quando ainda era criança e Walsh fez o mesmo com os dois filhos. “Eles nasceram num hospital que fica perto de Old Trafford. Da maternidade dava para ver o estádio. Depois de nascerem, passámos por lá antes de irmos para casa”, conta. O rompimento, diz, acabou por ser uma decisão familiar. Walsh já tinha feito a reserva do bilhete de época e teve de voltar atrás porque o pai e os filhos lhe pediram.

Os “rebeldes” começaram por angariar 180.000 libras para formar uma equipa de futebol e poderem competir na décima divisão. Logo nessa época, festejaram a promoção, tal como aconteceu nas duas temporadas seguintes, estabilizando no sétimo escalão durante seis anos, mas sempre perto da promoção. Nesta temporada, estão bem encaminhados para voltar a progredir e o estádio próprio será importante para este objectivo. Também o financiamento do recinto foi assegurado através de um modelo mutualista.

Dos seis milhões de libras previstos para a construção do estádio, dois milhões vieram dos adeptos através do modelo de community shares – cerca de 1500 investiram. O restante provém de subsídios municipais e empréstimos. “É uma forma de investimento e a minha família também investiu. Nós conseguimos isto com 1500 pessoas. Imaginem o que faria o Manchester United, que tem 75.000 pessoas no estádio em todos os jogos”, refere Andy Walsh. Sem problemas de financiamento, o Broadhurst Park está na recta final da construção, já com a relva colocada e quase todas as bancadas erguidas. Segundo explica Graham Byrne, o responsável da obra que também é um adepto que virou as costas a Old Trafford, uma das bancadas foi comprada a outro clube.

Confiança cega no treinador
Há, pelo menos, um aspecto em que os red rebels são iguais aos red devils, que é a confiança no treinador. Se o Manchester United confiou em Alex Ferguson durante 27 anos, o United of Manchester é conduzido desde a sua génese pelo mesmo técnico, Karl Marginson, um homem da terra que fez carreira como jogador nas divisões secundárias e que, como treinador, só teve um clube. Claro que Marginson nunca teve milhões para contratações, pelo que o clube tem de recorrer ao seu departamento de scouting e às suas equipas jovens para compor a equipa. No primeiro ano, recorda Andy Walsh, o FCUM fez treinos de captação e apareceram 500 candidatos e ficaram alguns, mas já não é assim que funciona.

As divisões secundárias são o campo de recrutamento do clube e, por vezes, lá aparecem alguns que andaram pela formação de clubes de renome. Um deles chegou a jogar na equipa principal do Manchester United, mas apenas por alguns segundos. Nick Culkin é um veterano guarda-redes de 36 anos que ainda joga quando é preciso, mas que é mais treinador do que jogador. O momento mais alto da sua carreira aconteceu a 22 de Agosto de 1999, quando jogou apenas 12 segundos num jogo da Premier League contra o Arsenal. Entrou para substituir o holandês Raymond van der Gouw, marcou um pontapé de baliza e o jogo acabou logo a seguir. Um jogador/treinador de apelido mundialmente conhecido que também está ligado ao FCUM é Giggs, mas não Ryan Giggs, o fantástico esquerdino do Manchester United. É o seu irmão mais novo, Rhodri, que é o treinador da equipa de reservas.

O objectivo do FC United of Manchester é crescer, mas pode crescer sem contrariar a sua filosofia? Como será se, algum dia, o clube tiver de lidar com transferências, patrocínios e transmissões televisivas que valem milhões? “Os grandes clubes terão sempre muito dinheiro. Temos de ser pragmáticos. Queremos que o nosso clube se mantenha fiel aos seus princípios. Não tem a ver com tamanho, tem a ver com estrutura. Queremos um clube que permita o contributo democrático dos adeptos. É trabalho duro, as pessoas nem sempre concordam, mas é isso que é a democracia”, refere Andy Walsh, que continua a ser adepto do “outro” United. “Serei do Manchester United até morrer. Só não quero dar dinheiro aos Glazer. Se me querem tratar como cliente, eu vou agir como cliente e não lhes dou um tostão.” E por quem iria torcer se as duas equipas se encontrassem? “Não era um jogo que eu quisesse ver.”

* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos

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