Os olhos de Maradona

O chamado “golo do século” foi considerado um hino ao génio individual.

Numa tarde de Junho em 1986, na cidade do México, Diego Armando Maradona marcou o mais célebre golo de uma fase final de um Campeonato do Mundo de futebol.

Sobre esse jogo muito se disse. A Argentina defrontava a Inglaterra quatro anos após a guerra das Malvinas. O contexto tornou o jogo em motivo de comentário político mas também de leitura cultural. Com a ajuda da sua mão, o argentino abriu o marcador no Estádio Azteca, o que feria a ética inscrita na lei do jogo. Muitos confirmavam então os seus preconceitos sobre os expedientes que imperavam a Sul. Mas o que fez Maradona apenas quatro minutos depois da muito comentada “Mão de Deus” já se encontrava dentro dos limites das regras do futebol, embora para alguns tamanho virtuosismo devesse igualmente ser remetido ao universo restrito da acção divinal. A descrição do percurso de Maradona, itinerário único cheio de pequenas inflexões, mudanças de ritmo e subtilezas, desde o seu meio-campo até quase à linha de golo da baliza inglesa, deixando para trás sucessivos oponentes, não substitui a beleza das imagens e a graça única do movimento.

O chamado “golo do século” foi considerado um hino ao génio individual. Maradona revelava uma capacidade técnica e um controlo corporal únicos. Esta desmedida concentração de destreza nos seus pés só poderia dever-se  a um dom que nascera com o atleta dos bairros pobres de Buenos Aires. Mas o valor deste gesto de Maradona, aclamado universalmente, resultava também da sua raridade. Um dos aspectos mais característicos da evolução do futebol moderno foi a repressão sobre o executante do drible. Gesto de inegável prazer para o atleta e para o público, o drible submeteu-se à lógica do futebol colectivo, para passar a ser um luxo reservado a alguns notáveis. A utilidade da finta avaliava-se pelo modo como beneficiava a equipa; o perigo decorrente da perda de bola limitava o gesto a apenas alguns espaços e em determinadas situações. Movido pela procura da eficácia, no âmbito de uma progressiva profissionalização da modalidade, o processo de racionalização táctica do jogo obrigara os jogadores a ter uma outra seriedade e a responsabilizarem-se pelas consequências dos seus movimentos. Nem o público nem os treinadores toleravam mais os habilidosos que jogavam para a “galeria”, os improvisadores inconsequentes, que não respeitavam a dinâmica funcional e estética da coreografia imaginada pelo treinador. Ao criticar estes indivíduos irreflectidos, os jornalistas referiam-se algumas vezes à posição do seu corpo, nomeadamente à posição da cabeça, inclinada para baixo, para os olhos poderem assim controlar o lugar da  bola. Com os olhos colados à bola estes virtuosos não conseguiam perceber o movimento da equipa, não tinham condições para detectar as linhas de passe, os tijolos do edifício táctico. Do jogador moderno exigia-se que tivesse a cabeça erguida para poder olhar.

Num jogo tão centrado no desempenho motor dos jogadores, a importância do acto de olhar pode passar despercebida, apesar de serem os olhos que medeiam a relação do indivíduo com a dinâmica do jogo e que dão as coordenadas aos jogadores para se movimentarem no espaço. Essa opacidade da função dos olhos é mais evidente quando, como no caso do golo de Maradona, falamos de um movimento que parece definir o zénite do génio individual, o gesto supremo de alguém que aparentemente se esqueceu que havia uma equipa e resolveu tudo sozinho. Esta é, no entanto, uma visão limitada da obra de arte de Maradona. As opções do atleta na sua extraordinária corrida dependeram a todo o momento da evolução de uma coreografia ampla formada pelos seus colegas e pelos elementos da equipa adversária. Maradona não baixou a cabeça colando os olhos na bola, nem procurou com o seu virtuosismo ultrapassar adversários em série. Ele elevou diversas vezes a cabeça para encontrar linhas de passe e só avançou até ao fim à medida que se apercebeu da lógica de expectativas de colegas e adversários. Talvez mais do que pernas, os olhos foram os grandes artífices do golo do século. Na descrição realizada na sua autobiografia Maradona refere: “Eu arranquei atrás do meio-campo, do lado direito; rodei e passei entre Beardsley e Reid. Nesse momento, foquei a baliza, embora ainda estivesse longe. Com um toque para dentro, passei pelo Butcher, e foi a partir desse momento que Valdano começou a ajudar, porque Fenwick, que era o último, não vinha para mim! E eu esperava-o para fazer o passe para dentro, como seria lógico... se Fenwick viesse, eu passava a bola a Valdano e ele ficava sozinho contra Shilton... Mas Fenwick não vinha. Então enfrentei-o, fintei para dentro e fui por fora, a descair para a direita... Eu continuei e lá tinha Shilton pela frente” (Maradona 2001, 134).

Na interpretação de uma actividade corporal, cuja lógica última é dificilmente traduzida por palavras e na qual os movimentos dos jogadores parecem naturais e quase sempre transparentes, é negligenciada a forma como evoluiu um domínio sobre uma experiência de espaço moldado pelo treino e pelos princípios do futebol moderno, e posto em prática pelas respostas do corpo à inteligência do olhar. O génio individual de Maradona manifesta-se então, não apenas pela habilidade técnica excepcional mas também pela capacidade de ler e decifrar o movimento no espaço e de improvisar sobre essa pauta. Este domínio prático de uma experiência de espaço era fundamental para dar sentido ao drible no futebol moderno. À superfície, o genial golo de Maradona pode ser interpretado como o resultado de um dom, de uma intuição primária que nesse dia se manifestou superiormente, uma arte mágica, habilidosa como “a Mão de Deus”, realizada por um indivíduo cuja imagem e a vida pareciam negar qualquer sofisticação. E no entanto, mais do que um malabarismo espectacular, o seu gesto revelava o modo como o futebol se constituía como uma construção colectiva depurada por uma experiência sedimentada no tempo e interpretada por corpos dotados de uma evidente inteligência prática.

Investigador do ICS-UL

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