Ocaña, o opositor do merckxismo

O ciclista espanhol que não se conformava com o domínio de Eddy Merckx no Tour.

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Merckx e Ocaña numa etapa do Tour de 1971 DR

Quando a Volta à França saiu para a estrada em 1971, vivia-se a era do merckxismo, a de uma supremacia sem igual na história do ciclismo. Eddy Merckx, baptizado compreensivelmente com o nome de "Canibal", amealhava troféus de Fevereiro a Outubro, os meses que marcam o arranque e o final da temporada velocipédica. O domínio do campeão belga era tal no início dos anos 1970 que provocava resignação e apatia nos adversários, que nem tentavam atacar o duplo vencedor do Tour.

Mas havia um homem inconformado. Atacante por natureza, grande apreciador dos finais em alto, um jovem espanhol, de 26 anos, recusou a fatalidade de ser um nome oculto pela grandeza de Merckx que, em privado, tratava por "a grande besta". O sentimento de revolta de Luis Ocaña vai inflamar toda a equipa Bic, que o apoia sem reserva na tentativa suicida de terminar o reinado do belga.

O primeiro passo dá-se na subida a Puy-de-Dôme, quando conquista a etapa com brilhantismo, mas não consegue destronar o vencedor em título. A amarela ainda é uma miragem para o espanhol que, confiante devido ao triunfo, não desiste do seu propósito. Três dias mais tarde, na etapa que liga Grenoble a Orcières-Merlettes, vai ter o seu momento alto. Aquela 11.ª etapa, disputada num sufocante 8 de Julho, era curta (134 quilómetros), mas suficientemente longa para a glória.

Alguns quilómetros depois da partida, é Joaquim Agostinho que, motivado pelo director desportivo Raphaël Geminiani, inaugura as hostilidades. Zoetemelk, Van Impe e Ocaña seguem-no. A rebeldia deu resultado: Merckx fica no pelotão, prestes a viver um dos dias mais difíceis da sua carreira.

Um pouco mais à frente, do Col du Noyer, onde se desmoronou no ano anterior, o ciclista da Bic decide ir-se embora. Deixa Agostinho e os outros e parte em solitário. À chegada, em Orcières-Merlettes, consegue diferenças surreais para os que se lhe sucedem na meta. Lucien van Impe, o segundo da etapa, perde quase seis minutos. Ocaña veste a camisola amarela. "A cavalgada de Ocaña lembrou-me as grandes fugas do nosso tempo. Aquelas de Coppi, por exemplo. Pela primeira vez desde há muito tempo senti a nostalgia do Tour", descreveu Louison Bobet, o primeiro ciclista a ganhar a Volta à França em três anos consecutivos.

Só um pormenor ofuscou a performance do corredor que, aos 10 anos, tinha adoptado França como casa: a derrota de Merckx. Sem apoio da sua equipa, o "Canibal" rolou sozinho durante quase 80 quilómetros, pensando mesmo em desistir, antes de conseguir limitar a sua perda a 8m42s. Sem procurar desculpas, elogia o seu rival: "Aquilo que ele fez é extraordinário. É preciso inclinarmo-nos diante de um campeão desta categoria. É isto o desporto. Na vida, como no desporto, assistimos a eventos fantásticos. Não há mais nada a dizer. É essa a regra, saber reconhecer o mérito".

A graciosidade do belga na derrota surpreende toda a gente. Fãs e menos fãs são unânimes em considerar que a sua atitude não podia ter sido melhor. A atitude de Merckx consegue relegar o feito de Ocaña para segundo plano. "Fugas como a de Ocaña é algo que não vemos todos os dias. No entanto, questiono-me se aquilo que Merckx fez lá atrás não é mais formidável. Numa situação daquelas, com o moral afectado, qualquer outro campeão, mesmo os grandes do passado, teriam perdido não oito, mas 20 minutos", destacou Geminiani no final da etapa.

Ocaña não acredita na sua sorte. A vitória e a camisola amarela não foram suficientes para relegar o seu maior rival para segundo plano. E o pior ainda estava para vir. Na descida do Col de Menté, nos Pirenéus, sob uma trovoada ameaçadora e um céu negro, o pavimento fica encharcado. Os ciclistas não conseguem ver um palmo à sua frente, mas Merckx, sem nada a perder, aborda uma curva a 80km/h e cai. Levanta-se, sem mazelas, e regressa à estrada. O espanhol, que tem fama de ser mau a descer, tenta acompanhá-lo e não escapa à queda. Consegue levantar-se, mas é abalroado por Zoetemelk.

O destino prega uma partida a Ocaña, que chora com dores no chão e desiste. Por respeito ao seu adversário, o belga, que ainda estava a 7m30s do primeiro lugar da geral, recusa envergar a amarela e vai visitá-lo ao hospital. Será ele o vencedor desse Tour, mas, como escreveu Jacques Goddet, director da Grande Boucle, nada seria como antes.
 

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