“Não há razão para Portugal não ser dos melhores no futebol feminino”

Pia Sundhage, a seleccionadora sueca, que usa canções como método de trabalho, diz que ainda há muito a fazer para haver igualdade de género: “Vai demorar até que nos tratem de forma igual”, diz numa entrevista ao PÚBLICO.

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Pia Sundhage, actual seleccionadora sueca de futebol feminino DR

Após uma bem-sucedida passagem de cinco anos pelo comando da selecção dos EUA, Pia Sundhage, de 53 anos, decidiu regressar à Suécia para liderar a equipa do seu país. E se, por agora, desfruta do trabalho ao mais alto nível, admite no futuro abraçar um desafio diferente “como treinar uma pequena equipa sueca”. Conhecida como a treinadora que gosta de cantar, não escondeu a indignação com o episódio que em Novembro embaraçou a Suécia: a federação ofereceu um carro a Anders Svensson, recordista de internacionalizações da selecção masculina, mas esqueceu-se de Therese Sjögran, a recordista feminina.

Que canção dedicava a este incidente?
(risos) Foi um desastre. Fui apanhada de surpresa por toda a situação. O que devia ter sido uma celebração tornou-se num dia mau. Uma canção...? (risos)

Foi um caso surpreendente sendo a Suécia um país líder nos rankings da igualdade de género.
Exactamente. A federação admitiu que cometeu um erro e pediu desculpas. Foi precipitação. Tomaram a decisão à pressa, queriam que fosse uma surpresa e revelou-se um erro.

Mesmo sem cantar para mim, é interessante o uso que faz da música no seu trabalho.
(risos) Sim, é verdade. Eu sou assim.

Continua a cantar, agora com as jogadoras suecas?
Às vezes, sim. As canções surpreendem, despertam emoções. Tenho sempre algum tipo de mensagem: canto uma canção e depois falo sobre certas coisas. Há outras situações, como quando recebi o prémio de melhor treinadora do mundo [em 2012]. Eu estava muito nervosa [na cerimónia] e tinha de dizer algo em inglês. Foi por isso que comecei a cantar, para mim é mais fácil.

Passou um ano desde o seu regresso à Suécia. Está satisfeita?
Estou muito feliz por ter tomado esta decisão tão difícil. O Euro 2013 [na Suécia] foi algo especial. Aquilo de que mais gostei foi não termos ganhado a medalha de ouro. Com os EUA estive em três finais consecutivas, mas desta vez não éramos suficientemente boas. Apesar disso, foi muito mais do que futebol. Recebi imensos e-mails e mensagens. Quando viajo de metro as pessoas abordam-me e dizem: “Que grande Verão. Não ganhámos, mas foi um grande Verão”. É especial treinar a equipa do próprio país.

Esteve várias vezes em Portugal para disputar a Algarve Cup. Mas o futebol feminino português ainda não tem grande significado.
A Algarve Cup é um torneio fantástico. É uma loucura que ninguém vá ver os jogos, porque ama-se realmente futebol [em Portugal]. Na Suécia também não temos grandes assistências no campeonato. Mas durante o Euro foi diferente, muito entusiasmante. Se se gosta de futebol, e se se gosta deste entusiasmo, é simplesmente uma questão de aprendizagem para as pessoas.

Foi duas vezes campeã olímpica e também vice-campeã mundial pelos EUA. O que lhe falta vencer?
Ganhei o Europeu como jogadora, mas não como treinadora. Nunca ganhei o Mundial, fosse como jogadora ou como treinadora. Mas o momento mais alto da minha vida no futebol foi em 2011, nos quartos-de-final do Mundial. Os EUA estavam a jogar contra o Brasil. Estávamos a perder por 2-1 no prolongamento e no último instante a Abby Wambach marcou um golo e acabámos por vencer nos penáltis. Conseguimos algo quase impossível. E vindo eu de uma pequena localidade, onde no início nem me deixavam jogar futebol por ser rapariga... Eu diria que nada falta no meu currículo.

Tinha uma ligação emocional com as jogadoras dos EUA.
Tinha... O dia da despedida foi especial. Disse-lhes que ia voltar a casa, que tinha a oportunidade de treinar a minha selecção. Fez-se silêncio total. Total! Pensei: “Que porcaria fiz?” E, então, uma das jogadoras começou a bater palmas e toda a gente se levantou a aplaudir. Comecei a chorar. Foi muito comovente. Foi a melhor maneira de me mostrarem que tinham gostado de mim enquanto treinadora, durante aqueles cinco anos. Deram-me uma guitarra, assinada por todas. Foi o melhor presente que alguma vez recebi.

Mas, quando chegou, a equipa vivia uma fase complicada. O Mundial 2007 tinha provocado conflitos entre as jogadoras. Como deu a volta a isto?
A [guarda-redes] Hope Solo não tinha jogado nas meias-finais e os EUA perderam. Perguntei o que se tinha passado e ouvi várias versões. Falei com a equipa e disse-lhes duas coisas. “Primeiro: eu quero ganhar. Vocês querem ganhar?” Claro que queriam ganhar. A minha experiência diz-me que é preciso uma grande guarda-redes. Mesmo vindo da Suécia sabia que a Hope Solo era a melhor do mundo. E disse: “Não estou à espera que esqueçam o que aconteceu. Mas têm de perdoar”. Foi difícil para elas.

Contou que não a deixavam jogar futebol quando era jovem. Como ultrapassou isso?
Tinha cinco ou seis anos e mudaram o meu nome: em vez de Pia chamavam-me Pelle, que é um nome masculino. E durante dois anos joguei com os rapazes. Na altura foi assim que resolvemos o problema. A estrada desde que era Pelle até me tornar seleccionadora da Suécia é a estrada do desenvolvimento do futebol feminino, na Suécia e no mundo. Sinto-me muito orgulhosa pelo facto de esse ser o meu caminho.

As coisas mudaram muito?
Temos lutado... É curioso que, nos EUA, diziam-me a mesma coisa: não podemos parar de lutar. Os EUA têm uma selecção feminina muito bem-sucedida, com vários títulos conquistados. Já a selecção masculina nunca ganhou nada. A mesma coisa se passa na China. Alguma vez a selecção masculina fez alguma coisa? Não. Mas a selecção feminina disputa finais, conquista medalhas. Vai demorar até que nos tratem de forma igual. E não vai acontecer enquanto eu for viva.

Acha mesmo?
O futebol é um mundo masculino. Na banca e nas empresas há mulheres com muito poder. Se olharmos para a política também: uma mulher pode dirigir um país inteiro, como acontece na Alemanha. Mas assim que vestimos fato de treino e chuteiras, algo acontece. De repente não somos suficientemente boas. Isso ainda existe na Suécia. Mas, tendo dito isto, diria que na Suécia há uma franca igualdade, em comparação com outros países.

Portugal, por exemplo.
Não há nenhuma razão para que Portugal não seja dos melhores no futebol feminino. A qualidade existe. Em Portugal respira-se futebol. Não sei o que está a falhar. Talvez os homens não queiram que as mulheres joguem futebol.

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