Lionel Messi – o futebolista que joga no futuro: como a natureza humana pode explicar o futebol

"Messi joga, não o que sabe nem o que lhe ensinaram, mas sim o que é e o que sente."

Lionel Messi é considerado por muitos o melhor futebolista de todos os tempos. Os registos que atinge, os recordes que bate todos os anos, os títulos individuais e coletivos que vence, assim o parecem demonstrar. Tem a 5.ª Bola de Ouro “no bolso” e, com 28 anos acabados de fazer, é expectável que o seu rendimento não tenda a desacelerar, antes pelo contrário. Messi arrisca-se a tornar-se o futebolista com maior rendimento individual e coletivo da história do futebol mundial.

A questão que se impõe é: como é que é possível no futebol moderno, cada vez mais fechado, onde os espaços para atuar e executar se tornaram extremamente curtos e fechados, num futebol altamente musculado e atlético, no qual os atletas estão subordinados a um treino e a um controlo fisiológico que leva os seus corpos a um super rendimento no que concerne ao nível de força, velocidade e capacidade de arranque; como é possível, neste contexto, que um sujeito com apenas 1,69 m., com problemas fisiológicos sérios, com debilidades físicas acentuadas, nomeadamente ao nível do crescimento ósseo e muscular, atinja números, marcas e um rendimento completamente fora do normal?

Não é apenas o número de golos, por si só extraordinário, que faz de Messi um dos mais prodigiosos futebolistas do planeta. São as assistências, o número de passes de rotura, a quantidade de jogadas de perigo que cria, os dribles, etc.. Este rendimento pode ser, aliás, comprovado em números. Um estudo realizado entre 2010 e 2014 pela empresa OPTA, especialista em estudos analíticos e estatísticas desportivas, concluiu que Messi é, de longe, o futebolista mais produtivo do planeta: é o que faz mais golos, é o que precisa de rematar menos para marcar, é o que “inventa” mais golos sozinho (ou seja, é o que precisa menos da equipa para marcar), é o que realiza maior percentagem de passes que chegam ao destinatário (superior a 86% por jogo), é o que faz mais assistências para golo, é o que efetua mais passes de rotura, é o que dribla mais adversários, etc… Este estudo indica, aliás, que o número de golos que Messi marca “sozinho”, ou seja, sem ser assistido, é superior ao número total de golos da maior parte dos melhores futebolistas do mundo, que necessitam muito mais de se assistidos para fazer golo. A OPTA concluiu que “Messi is impossible”: “It´s not possible to shoot more efficiently from outside the penalty area than many players shoot inside it. It´s not possible to lead the world in weak-kick goals and long-range goals. It´s not possible to score in unassisted plays as well as the best players in the world score on assisted ones. It´s not possible to lead the worlds forwards both in taking on defenders and in dishing the ball to others. And it´s certainly not possible to do most of these things by insanely wide margins”.

Ora, uma das principais motivações deste livro que lancei recentemente com a chancela Edições Vieira da Silva, intitulado Messi - o futebolista que joga no futuro: como a natureza humana pode explicar o futebol, reside precisamente em tentar compreender este rendimento “impossível” do astro blaugrana. É tentar compreender um mistério. O mistério da genialidade de Messi, o menino que não podia crescer, a quem lhe foi dito na infância que teria, inclusive, problemas a andar e nunca poderia ser futebolista profissional.

Confesso que Messi é o melhor jogador de futebol que vi na vida. É, aliás, na atualidade, dos poucos que me transmite emoção. Vejo-o jogar, com a mesma motivação com que vou ao cinema, ao teatro ou a um concerto. Assistir a um jogo de Messi é como assistir a um espectáculo. A sua criatividade, a sua capacidade de improvisação, a relação que tem com a bola e a precessão que possui do jogo não têm paralelo no futebol atual. Nunca vi um futebolista executar com tanta facilidade e rapidez como ele, transformando o difícil no fácil, como se a bola fosse um prolongamento do seu corpo, obedecendo-lhe cega e fielmente. O antigo futebolista António Simões disse recentemente que a bola e Messi têm uma relação de amor. Não poderia concordar mais. Ela parece procurá-lo como não procura nenhum outro e ele acarinha-a como mais ninguém.

Por vezes dá até a sensação de que Messi centraliza nele todo o futebol. Parece que naquele pedaço de natureza está concentrado a essência do jogo, todos os seus predicados e segredos. Não obrigatoriamente o futebol enquanto mero jogo – o futebol golo, o futebol objetivo. Mas o futebol como arte, o futebol enquanto espectáculo, o futebol enquanto espaço de criação de beleza. Messi consegue transformar um lance banal em algo de belo. Os golos que marca, contando tanto como os outros, possuem, alguns deles, uma beleza particular. Nascem da criatividade do seu corpo, da mesma forma que uma tela é preenchida pela imaginação de um grande pintor. Uns limitam-se a fazer golos, são extraordinários atletas. Messi é mais do que um atleta e realiza obras de arte. Messi é um artista. A beleza do seu futebol vai muito para além do golo, pois o futebol também é muito mais do que golo. O golo é apenas o culminar de um conjunto de processos complexos, todos eles de extrema importância para se chegar a esse objetivo. Por outro lado, quantos jogos não existem que acabam sem golos? E não é por isso que não deixam de ser jogos de futebol, por vezes até com elevado interesse. E quantos jogos não acabam com 1-0 – um golo marcado num momento. Em 90 minutos de um jogo de futebol, o golo é apenas uma parte do mesmo, com certeza a mais importante, mas não exclusiva.

Em 90 minutos de um jogo de futebol passam-se, portanto, muitas coisas importantes para além do golo, essenciais para levar o mesmo de vencido, e também nesses capítulos Messi é o ator principal. No processo defensivo não participa, como sabemos. Mas no processo ofensivo ele é o farol, a orientação, o norte, o Criador. Messi é solução. Intervém em todos os momentos no processo ofensivo, muitas vezes até na primeira fase de construção quando vem buscar a bola junto dos centrais ou do médio defensivo. Messi joga, faz jogar, assiste, dribla, e ainda marca golos, não apenas golos assistidos mas golos que ele, a solo, inventa, qual mágico que tira um coelho da cartola perante o espanto do público que se interroga: “como é que ele fez aquilo?”.

Este livro não é, portanto, sobre a vida ou sobre a carreira do futebolista. Messi serve como ponto de partida para chegarmos a conclusões mais vastas. Messi é o objeto de estudo, o mistério que deve ser deslindado; que deve ser entendido. Mas o livro não se fica por aqui. Ele atenta, igualmente, em explicar o fenómeno desportivo à luz da natureza humana e até da Natureza, recorrendo ao pensamento filosófico e ao método científico. 

De forma a explicar o futebol de Messi, o futebol enquanto fenómeno e jogo e o desporto em geral, não me limitei à reducionista análise sociológica, que analisa os fenómenos à luz das estruturas sociais, ignorando muitas vezes a biologia e disciplinas fins, e realizei uma longa e profunda viagem sobre a natureza humana e temas contíguos: à relação corpo-mente; à consciência; ao livre-arbítrio; ao subconsciente; ao evolucionismo; e a outras matérias essenciais para compreender a condição humana, o “local”, onde, penso eu, se poderão encontrar as respostas que procuramos. Fundamentei-me nas mais recentes descobertas da biologia, genética, neurociência, evolucionismo, entre outras, e busquei inspiração em alguns filósofos, fundamentalmente em Espinosa, no meu entender um dos mais prodigiosos pensadores da natureza humana, nomeadamente sobre a relação corpo-mente.

Para além de Espinosa, o meu pensamento tem uma poderosa influência do conceituado neurocientista António Damásio (provavelmente o pilar filosófico-científico da obra), um dos autores que considero mais pertinentes na questão da natureza humana. As conclusões que desenvolveu no problema corpo-mente, testadas em laboratório, colocando o corpo no âmago da mente, ou seja, a mente em certa medida como serva do corpo (e não o contrário, como defendia Descartes), na senda do que Espinosa defendia, não só é brilhante, por ventura revolucionário, como nos pode ajudar a compreender muitos dos nossos comportamentos e ações, nomeadamente a ação no futebol e até o mistério Messi.

Ora, de forma a explicar Messi e o desporto em geral à luz da natureza humana, dediquei-me nas duas primeiras partes da obra em demonstrar que a natureza humana não é uma teoria. É um facto. E é imprescindível para compreendermos o desporto, a cultura e a sociedade em que nos inserimos. É crucial para compreendermos o ser humano e o meio em que se insere. Ao contrário do que muitas correntes sociológicas (empirismo) e de psicologia (behaviorismo) fizeram crer ao longo do século XX, que defendiam que o ser humano era uma tábua rasa, hoje a ciência certifica que existem estruturas biológicas inatas poderosíssimas que influenciam a nossa personalidade e, consequentemente, o nosso comportamento ao longo da vida, sem com isto invalidar que o meio exerça uma profunda influência na modulação da nossa pessoalidade.

Ao contrário do que defendiam as correntes sociológicas defensoras da tábua rasa, a ciência contemporânea comprova que o ser humano possui uma natureza particular, diferente de qualquer outra espécie, assim como cada espécie possui a sua própria natureza – é um género de reportório biológico, disponibilizado em potência pelo genoma. O ser humano possui características essencialmente humanas, como algumas emoções sociais (a admiração é um bom exemplo) e outras emoções que, embora possam existir noutras espécies, estão mais desenvolvidas no ser humano, como a compaixão, a empatia, a vergonha, entre outras, bem como um nível de consciência muito superior a outro animal.

Se a natureza humana não existisse e se nascêssemos todos como uma tábua rasa, como o empirismo e o behaviorismo defendiam, então Messi tinha sido ensinado a jogar futebol e era possível fabricar Messis em laboratório, um método preconizado pelo behaviorismo que defendia que era possível produzir qualquer aptidão e personalidade em laboratório através de estímulos sociais. No mesmo sentido, o desporto em geral seria, à luz do empirismo e do behaviorismo, um fenómeno social sem qualquer ligação direta com a biologia humana.

Ora, e empirismo e o behaviorismo estão mortos e a tese da tábua rasa está completamente desacreditada pela ciência. É evidente que qualquer animal nasce com características inatas, algumas delas pouco flexíveis, outras mais plásticas, fundamentais para sobreviver num determinado meio. A sobrevivência das espécies necessita de mecanismos inatos, como muito bem demonstrou Charles Darwin.

Parece-me evidente que Messi nasceu e desenvolveu talentos particulares para a prática do futebol. As idiossincrasias do seu corpo – o seu reportório biológico -, nomeadamente a sua debilidade de crescimento, potenciaram-no para a prática do futebol.

Na mesma senda, parece-me impossível que o desporto seja desconectado da biologia dos corpos que o criaram e o praticam. O desporto será, igualmente, uma manifestação da natureza humana no espaço social, isto é, das suas necessidades, carências e motivações biológicas. Em poucas palavras, defendo que o desporto manifesta socialmente a natureza humana. Tal como a natureza humana, o desporto é: compaixão, empatia, solidariedade, medo, admiração, vergonha, cooperação, etc., como tento demonstrar no terceiro capítulo da obra, onde, inclusivamente, estabeleço paralelos entre uma equipa de futebol e a organização tribal, à imagem de Desmond Morris, mas com novos dados.

Da mesma forma que o desporto é uma materialização da natureza humana, avento que o segredo do futebol de Messi reside na natureza do seu corpo, simultaneamente débil e robusta, o que é aprofundado no quarto capítulo da obra, dedicado exclusivamente a explicar Messi em função da sua natureza.

No que concerne a Messi, por um lado, a insuficiência de somatropina, a hormona de crescimento, prejudicou o desenvolvimento corporal, mas por outro, poderá tê-lo dotado de um corpo capaz de realizar algumas ações com maior vantagem, como a capacidade de arranque e a capacidade de mudar de direção (possível devido à constituição do seu corpo), duas das maiores armas de Messi.

Simultaneamente, o seu pequeno tamanho e a sua fragilidade muscular obrigaram-no, num jogo de futebol, a adquirir estratégias de evitamento de adversários, tendo de driblar e fintar os opositores que se precipitavam para ele, de forma a evitar o contacto de corpo. Isto é, a única forma de o corpo de Messi ter sucesso no futebol é evitando o contacto corporal, tendo neste sentido que desenvolver e aprimorar a arte do drible e da finta.

Um elevado número das ações que Messi desenvolveu ao longo da sua vida, no capítulo do drible e da finta, e noutros, embora sejam processos corporais na sua totalidade, ficaram mapeados neuronalmente. Desta forma, essas ações ficaram disponibilizadas de uma maneira mais automática, pois o cérebro disponibiliza-as automaticamente sempre que for necessário, isto é, sempre que houver contexto para o fazer. Esta capacidade de drible de Messi, que tem muito de corporal, mas também muito de neuronal na medida em que as acções corporais ficam mapeadas no cérebro do futebolista, aliada à sua capacidade de arranque e de mudar de velocidade, dotou-o de uma extraordinária capacidade de improvisação.

Mas não é só na capacidade de arranque, de mudança de direção e no drible que residem as capacidades de Messi. É na sua relação com a bola (na sua sensibilidade) em contexto de jogo e na sua relação com o jogo que podemos encontrar as suas melhores características. Por um lado, a relação que tem com a bola, sendo capaz de a manipular com o corpo a seu belo prazer, e por outro, a relação que tem com o jogo, sendo capaz de percecionar e de antecipar os movimentos dos colegas e dos adversários com grande apuro, aliado às características acima referidas, fazem de Messi um futebolista singular, impossível de prever.

Julgo que a relação com a bola se prende, sobretudo, com uma sensibilidade corporal. Já a relação com o jogo dever-se-á a uma sensibilidade corporal, claro, mas também a uma capacidade neuronal de antecipar problemas e soluções. Messi terá a capacidade neuronal de depositar em memória um conjunto extremamente alargado de jogadas e ações que já lhe foram úteis ao longo da vida e utilizá-las sempre que necessário, em função do contexto certo. Para determinado problema Messi tem uma determinada solução, já mapeada neuronalmente através da ação do corpo numa determinada situação e altura da sua vida. Claro que tudo isto funciona subconscientemente, em piloto automático, com pouco ou nenhum auxílio da consciência e do pensamento.

Ora, a capacidade neuronal que possui para antecipar os movimentos de colegas e adversários (eventualmente depositadas numa memória prodigiosa, pelo menos a este nível), “optando” sempre pela melhor solução, aliada à sua capacidade de execução irrepreensível, faz de Messi um futebolista que é capaz de chegar à solução mais rapidamente e assertivamente do que qualquer outro futebolista. Não é que Messi pense mais rápido do que os colegas, pois acho que o pensamento é lento de mais para ser útil numa ação que se quer rápida e certeira, mas Messi sente e, consequentemente, executa mais rápido do que os colegas e que os adversários, pois algures no seu subconsciente ele possui um reportório de memória que lhe permite adivinhar uma enorme quantidade de lances. Aliado a esta capacidade neuronal, Messi possui 1) uma relação com a bola em contexto de jogo única, 2) uma capacidade arranque incrível e 3) uma capacidade de mudar de direção extraordinária. Ora, são estas características que, porventura, fazem dele o futebolista mais “ilógico” da história do futebol mundial, capaz de bater todos os recordes, mesmo possuindo um corpo aparentemente débil.

O segredo de Messi não está no seu cérebro. Está no seu corpo. Este, informando o cérebro do seu estado e da sua natureza, é mapeado no cérebro (é criado um duplo neuronal do corpo de Messi) que, capaz de guardar uma imensidão de informação – no caso de Messi de movimentos – disponibiliza ao futebolista uma quantidade aparentemente interminável de soluções.

Messi não é uma tábua rasa, assim como nenhum ser humano o é. Messi é a totalidade de um organismo que possui uma determinada natureza, inata e adquirida, cujo reportório biológico lhe permite jogar futebol de uma determinada maneira. Messi joga, não o que sabe nem o que lhe ensinaram, mas sim o que é e o que sente. Joga com o corpo, na sua totalidade, em mecanismos e processos subconscientes, automatizados, sem deixar de estar consciente do que está a realizar. Messi joga com a sabedoria do corpo, que comanda e dá as directrizes de como agir. A consciência, embora presente, tem um poder residual na ação. A consciência conhece os movimentos. O corpo e o seu subconsciente executa-os.

Ricardo Serrado é historiador e autor do livro Messi - o futebolista que joga no futuro: como a natureza humana pode explicar o futebol

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