Jogos Olímpicos na mira dos índios da Amazónia

Jovens indígenas estão a ser treinados num projecto que procura talentos para a selecção olímpica brasileira de tiro com arco. Deixaram a aldeia e vivem em Manaus. Estão felizes e só o barulho os incomoda.

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Jogos Olímpicos na mira dos índios da Amazónia Ana Almeida (montagem), Hugo Daniel Sousa, Nelson Garrido

Oito índios estão lado-a-lado, de arco e flecha na mão. Olham concentradíssimos para o horizonte. Respiram fundo. Erguem o arco, puxam o braço atrás e apontam, fechando um dos olhos e encostando a corda à boca e ao nariz. Sustêm a respiração, sempre em silêncio absoluto. Esperam o momento certo. É agora. Largam a corda e a flecha sai a grande velocidade. O alvo foi atingido em cheio. A missão foi cumprida. Só que a missão não é mais uma sessão de caça no meio da Amazónia, mas sim um treino na vila olímpica de Manaus.

Inha Quira, Mui Piruata, Iagoara, Ywytu, Wanaiu, Ii Seen, Yaci e Wyrauassu são oito jovens índios que deixaram as suas aldeias para viver um ano em Manaus. O arco e a flecha sempre fizeram parte da vida deles. Os rapazes usam-nos para pescar e caçar logo pela manhã, quando saem para o rio ou a floresta com os pais. As meninas também se aventuram, quanto mais não seja pela brincadeira de acertar num lagarto ou num rato. Agora, os oito indígenas, com idades entre os 14 e os 21 anos, passam a maior parte do tempo a usar os seus nomes brasileiros (Nelson, Anderson, Drean, Gustavo, Jardel, Josiel, Graziela e Guibson) e a treinar-se para um dia serem atletas olímpicos.

Esta “ideia inusitada” — como lhe chama Márcia Lot, a caçadora de talentos que foi descobri-los no meio da floresta —, surgiu em Setembro de 2012. Virgílio Viana, superintendente-geral da Fundação Amazonas Sustentável, uma organização não-governamental, lembrou-se que estava na hora de aproveitar o talento natural dos índios. “Eles caçam uma arara voando a 100 metros de altura. O nosso desafio é misturar essa sabedoria tradicional com a tecnologia de ponta dos desportos olímpicos”, diz Virgílio Viana, um engenheiro florestal com muito trabalho feito na conservação da Amazónia.

Lançada a ideia, Márcia deixou São Paulo e aventurou-se pela Amazónia dentro. Viajando de barco, esta mulher de meia-idade, formada em educação física e especializada em treino, foi-se “infiltrando nas comunidades”. Viajou até oito horas de distância de Manaus. Organizou provas para tentar perceber quem tinha talento para o alto rendimento. Mostrou filmes para explicar o que são os Jogos Olímpicos, porque em algumas aldeias ninguém fazia ideia do que isso era. Recebeu “nãos” de mães que jamais deixariam os filhos abandonar a aldeia. Mas também recebeu “sins” de pais que viram na mudança para Manaus uma oportunidade para os filhos.

Depois de ter observado perto de 80 jovens, Márcia levou 12 indígenas para testes em Manaus e o grupo foi agora reduzido para oito. É difícil arrancar-lhes palavras e sentimentos. “São muito silenciosos”, como diz Márcia Lot, com uma bandeira do Brasil a amparar os cabelos grisalhos. Mas quase todos falam em oportunidade. “É uma oportunidade de treinar para Olimpíadas. Ela [Márcia] foi procurar talentos e tive a sorte de ser um deles”, diz Gustavo (Ywytu), de 17 anos, com muita timidez nas palavras e no olhar.

Gustavo é um dos sete rapazes. Graziela, de 18 anos, é a única menina do grupo. Sorri, com vergonha da câmara. “É uma experiência boa e única. A gente morava no interior e quando a dona Márcia apareceu por lá, atrás de arqueiros para vir treinar para cá, gostei muito”, conta a jovem, cujo nome indígena é Yaci (lua). “Os meus pais apoiaram a minha vinda”, diz Graziela, que já fez testes para estudar contabilidade e espera que este projecto ajude a melhorar a imagem dos índios: “As pessoas podem descobrir que somos pessoas normais, como todo o mundo.”

O ruído que incomoda
Os jovens índios, das etnias Kambeba, Karapanã e Baré, estavam habituados a usar o arco tradicional, em madeira. Agora, treinam-se com o arco olímpico e já estão adaptados. “Eu até achava que era difícil pegar numa pessoa que já começou com arco indígena, e que tinha vários vícios, mas o biótipo deles ajuda. Eles são robustos, têm uma estatura boa para o tiro com arco”, analisa Roberval dos Santos, várias vezes campeão brasileiro de tiro com arco e treinador destes jovens.

“Eles têm talento natural”, acrescenta Roberval, que até agora não notou dificuldades em ensiná-los: “Nas três selectivas aqui, eles ficaram cinco dias e aprenderam o que normalmente levamos dois meses para ensinar para pessoas que vêm fazer aulas.”

O projecto “Arqueria Indígena” entrou numa nova fase. Até agora, os aspirantes a atletas passavam pequenos períodos (dez dias) em Manaus, para aperfeiçoarem a técnica. Agora, vão ficar o ano inteiro, separando-se das famílias. É um desafio maior, o preço do desejo de ser atleta olímpico. “Daqui para a frente, quero treinar e quem sabe entrar na selecção brasileira de arco e flecha. E ganhar”, diz Anderson Costa, de 15 anos. Mui Piruata, como também é conhecido, deixou ficar a mulher na aldeia. Sim, Anderson é casado, apesar de o ar tímido e imberbe não o denunciar. “Na primeira vez [que vim], ela [a mulher] ficou um pouco brava comigo. Queria até que eu dormisse fora de casa. Mas depois aceitou e apoiou eu vir para cá treinar. Ficou tudo bem entre nós”, conta o jovem, entre sorrisos.

Anderson já tinha desafiado a lógica quando fugiu com a namorada pelo rio fora, porque os pais não aceitavam que eles se casassem. Só voltou quando a família concordou com o casamento. Agora, trocou a tranquilidade e o silêncio da aldeia de Três Unidos pela agitação e barulho de uma cidade com dois milhões de habitantes. A adaptação não tem sido fácil. “Tem sido difícil. Dá saudade dos amigos e da família, mas estou-me acostumando. Estou ficando bem. Tenho novos amigos”, reconhece Mui Piruata. O que mais o incomoda na cidade é o ruído. “Não suporto o barulho. E às vezes há muita quentura.”

Márcia confirma que “eles acham a cidade barulhenta”. “Às vezes preferem ficar quietinhos no quarto”, diz a tutora, que tem tentado fazer uma integração gradual. “Na primeira temporada, fomos ao supermercado, na segunda ao shopping center, na terceira ao cinema. Agora, vamos ao aeroporto. Tudo devagar, para não haver choque, porque muitos deles nunca tinham vindo para a cidade”, explica, acrescentando que nota fascínio e algum medo destes jovens pelas coisas novas da cidade.

“O desporto salva”
A diferença entre a aldeia e a cidade é ao mesmo tempo um perigo, mas também um teste para ver como reagem à pressão emocional de estar num sítio diferente: “Sinto que eles ficam bastante melancólicos, nostálgicos. Às vezes estão conversando e o olhar está longe, namorando a piscina olímpica da vila, porque a vida deles é na beira do rio”, diz Márcia Lot, que a cada dois meses os levará a passar alguns dias com a família.

Roberval dos Santos também destaca esse lado psicológico. “Não basta ter uma boa postura, boa execução no tiro, têm de ter o psicológico muito forte. É nessa hora que se separa um campeão olímpico de um arqueiro que simplesmente participa em Olimpíadas. A gente precisa de os expor às dificuldades e à pressão psicológica de uma competição”, conta o treinador, que nos próximos meses os acompanhará em competições regionais e nacionais. Os primeiros “resultados foram muito bons”, diz Márcia Lot: “Foram primeiros no infantil e juvenil, junto com os branquinhos. Nós somos branquinhos para eles.”

Quando a Fundação Amazonas Sustentável criou este projecto, a meta eram os Jogos Olímpicos de 2016, que se realizam no Rio de Janeiro. Mas o treinador avisa que esse é um objectivo demasiado ambicioso. “O Mundial de 2017, os Jogos Panamericanos de 2018 e Olimpíadas de 2020, essas sim, podem ser as nossas metas. Conseguir colocá-los na selecção olímpica para 2016, onde há gente com 15 anos de experiência, é bem complicado”, diz o treinador, avisando também que ainda é cedo para perceber se algum destes indígenas tem estofo de campeão olímpico. “Leva anos para saber isso.”

Independentemente de os jovens se qualificarem para os Jogos Olímpicos, este projecto vai continuar. Porque não se esgota no aspecto desportivo. “Em primeiro lugar, é um projecto de inclusão, porque o indígena no Brasil foi muito rejeitado, por inúmeras décadas, e ainda é”, argumenta Márcia Lot. “Temos uma dívida histórica com os indígenas, porque a gente os massacrou muito. A gente tem a intenção de resgatar a auto-estima deles e a gente está conseguindo, porque eles se sentem valorizados. Estão muito contentes.”

Esta caçadora de talentos tem a “filosofia de que o desporto salva” e vê isso mesmo neste projecto: “A gente olha e a juventude está muito perdida. Quando os indígenas vêm para a cidade, sem uma meta e um foco, principalmente aqui em Manaus, acabam caindo na bebida, as meninas acabam caindo na prostituição e acabam-se perdendo. Eles são muito puros, muito ingénuos. Colocando-os no desporto, eles têm um foco”, defende Márcia, afirmando que esta iniciativa foi muito bem recebida nas aldeias e que nunca viu do outro lado o sentimento de que poderiam estar a ser explorados.

A treinadora lembra até uma história, passada numa das aldeias que visitou. Como ninguém sabia o que são os Jogos Olímpicos, Márcia exibiu um filme em que se via uma atleta a receber a medalha de ouro. “No fim dissemos: ‘quem sabe um dia a gente possa trazer o ouro olímpico para a sua aldeia’. Aí o pajé, um senhor muito velhinho, disse: ‘Finalmente o homem branco vai devolver o ouro que levou de nós há tantos séculos.’”

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