Ir ao futebol para sermos tratados como bichos

Já há muito que percebi que os estádios de futebol – e nem sempre o foram – são, hoje em dia, uma expressão do dualismo social, nos seus privilégios e abusos, que nos atravessa: de um lado os senhores que, na protecção dos seus carros, entram, longe de tudo e de todos e sem cruzamentos com a plebe, pelas cavernas do estacionamento para, subindo nos elevadores, chegarem aos casulos onde se albergam e onde comem e bebem – álcool incluído – e onde terão a visão da apoiante massa popular apenas nas bancadas do outro lado do campo; desse outro lado, os que fazem do futebol um espectáculo de massas que permite o êxito do negócio mas que se encontram sujeitos a todas e mais umas regras de controlo e revistas, são tratados como vassalos sem direitos, apertados em espaços de atropelo uns aos outros, empurrados daqui, empurrados dali num sufoco permanente até que, num derradeiro esforço de uma pequena passagem, sejam expelidos para a vista do relvado.

Ambos, nas aparências pelo menos, comungando do mesmo fervor clubista. Como se fossem iguais. Como se tivessem o mesmo tratamento. Como se o facto de apoiarem o mesmo clube derrubasse as barreiras que lhes impuseram à chegada – e que parece ter no golo a sua expressão igualitária máxima.

No domingo fui ao Jamor – para ver a minha neta dançar e o Benfica a jogar. À chegada, de antecedência por via das coisas, uma enorme multidão de camisolas vermelhas a ocupar a entrada da praça da Maratona por onde o meu bilhete dizia dever entrar. A minha mulher e eu entramos no amontoado, andando centímetro a centímetro, aos encontrões, apertos e pisões, empurrados e levados na mole humana que tinha no ver o início do jogo o objectivo maior. E embora a multidão se comportasse bem e tentasse movimentar-se com civilidade, o ambiente não era nem agradável, nem cómodo. Pior, era assustador se se pensasse nas consequências que daí poderiam resultar caso houvesse qualquer pânico. Desistimos e voltamos para trás – não sem grandes dificuldades – na secreta esperança que alguém responsável solucionasse as entradas.

Já fui a muitas centenas de jogos de futebol em variados estádios no país e no estrangeiro. Já vi muitas organizações de entradas para estádios e também já participei na sua organização. Já estive dos dois lados em diversas ocasiões: do lado dos senhores de acesso fácil ou do lado dos populares em penosos caminhos de diferentes estádios e diferentes países. Já levei filhos de outros aos ombros e já entrei de carro até porta.

Sei, portanto, o suficiente destas coisas para poder dizer que o que se passou no Jamor é o somatório de incompetência e de total falta de respeito pelos cidadãos-espectadores. Quer dos organizadores que se mostraram incapazes de perceber os problemas para encontrar as soluções, quer da polícia que igualmente se mostrou incapaz de encontrar soluções eficazes. Foi infame! E é perturbador.

Sendo um estádio antigo, inaugurado em 1944, o Estádio de Honra do Jamor exige uma organização adaptada para um espaço que, tendo poucas entradas, tem a vantagem de um largo corredor na base das bancadas que permite a distribuição dos espectadores para todos os sectores. E que exige, do lado da Maratona, uma organização de corredores iniciada a boa distância dos pontos de paragem para revistas e para a verificação electrónica de bilhetes.

Bastava olhar as costas dos bilhetes de ingresso para ver que o problema iria surgir: a entrada norte da Maratona servia 20 sectores, enquanto que a entrada sul da mesma Maratona servia apenas oito sectores. O que significa, sem necessidade de especial análise, uma entrada desproporcionada de pessoas por um e outro lado. Facilmente previsível, facilmente programável e emendável e, portanto, evidenciando falha grave da organização montada pela Federação Portuguesa de Futebol.

Como se esta incompetência não bastasse, juntou-se a incapacidade da chefia da Polícia, que pretendeu justificar o péssimo ambiente criado e o mau serviço prestado com um corporativo "as pessoas têm de ter consciência de que têm de chegar cedo aos estádios de futebol em geral”. Não, não têm que ter essa consciência coisíssima nenhuma! Tendo comprado bilhetes para um espectáculo com hora marcada, as pessoas devem chegar às horas que melhor entenderem e com pleno direito de entrada cómoda e segura num horário razoável de dispêndio de tempo aceitável. Com o respeito como princípio base, compete à Polícia encontrar soluções que garantam a sua segurança - de todos sem excepção - e zelar pela sua comodidade.

E as soluções estavam lá: bastava utilizar parte da força que tanto fizeram para impedir o avanço das pessoas e, numa forma construtiva e avisando da vantagem, levá-las para a porta sul da Maratona onde não havia ninguém – foi por lá, logo que descobri a hipótese, que entrei – para utilizar depois o corredor interior de distribuição. Solução que se encontraria se o propósito da acção fosse respeitar os espectadores e não o fazer frente. Em vez disso, o responsável policial, numa forma distorcida do seu papel cívico, culpabiliza os espectadores, razão principal para haver bilhetes, bancadas e espectáculo. E multidões.

E de que valeu este mal-estar? De coisa nenhuma! A dado momento tudo entrou sem qualquer revista ou verificação de bilhetes. Ao meu lado a conversa "eu não te dizia que não era preciso comprar bilhete, já no ano passado foi assim..." provava o disparate.

Esta falta de respeito pelos espectadores portadores de ingressos não é admissível, não é desculpável e exige a chamada à responsabilidade por quem de direito. Em defesa dos direitos de cidadania e para que o futebol seja um espaço civilizado de divertimento.

Antigo seleccionador nacional de râguebi e arquitecto

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