Freddy vendeu o carro para ver o ouro que “é tudo”

A selecção de râguebi sevens das Ilhas Fiji conquistou a primeira medalha (e de ouro) nos Jogos Olímpicos.

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Os sevens de Fiji foram implacáveis no torneio masculino PHILIPPE LOPEZ/AFP

Duas pistas para se perceber a dimensão do râguebi sevens nas Fiji, um arquipélago de mais de 300 ilhas no Pacífico Sul. Os nomes dos 12 jogadores da selecção olímpica de sevens das Fiji não foram anunciados pelo treinador em conferência de imprensa, mas pelo próprio primeiro-ministro da nação insular, Frank Bainimarama, pela televisão, em horário nobre. E aqui fica a outra pista. Freddy, um volumoso fijiano com uma t-shirt a dizer “I (coração) Fiji”, vendeu (pelo menos é o que ele diz) o carro e a mobília de casa para angariar dinheiro suficiente para financiar uma viagem até ao Rio de Janeiro. “A medalha de ouro é tudo”, dizia antes da final olímpica que iria opor as Fiji à Grã-Bretanha no Estádio de Deodoro, no Rio de Janeiro. Freddy, mais cerca de 200 dos seus compatriotas que também fizeram a viagem, viu os sevens das Fiji ganharem tudo.

No regresso do râguebi ao programa olímpico após 92 anos de ausência, as Fiji conquistaram a sua primeira medalha de sempre em todas as edições dos Jogos, com uma exibição autoritária na final sobre a Grã-Bretanha, vencendo por 43-7 e tornando-se na segunda nação a estrear-se no medalheiro olímpico com um ouro – alguns dias antes, o Kosovo conseguira igual proeza no judo feminino, com o título de Majlinda Kalmeni. Aquela que é considerada a melhor selecção de sevens da actualidade – há quem lhes chame os “Globetrotters” desta variante mais curta e bem mais rápida do râguebi – não deu qualquer hipótese aos britânicos, chegando ao intervalo a vencer por 29-0 e abrandando ligeiramente no segundo tempo, ao ponto de permitir um ensaio ao adversário quando já tudo estava mais que decidido.

“Toso Viti, toso” (Força Fiji, Força), era o grito que se ouviu de pequenas bolsas de adeptos fijianos espalhadas pelo estádio. Não estavam em maioria, mas a equipa do Pacífico Sul tinha os favores do público e até o apoio no local de membros das muitas pequenas comitivas nos Jogos – gente de Nauru, Ilhas Salomão, Estados Federados da Micronésia ou Papua Nova Guiné foram alguns dos fijianos temporários que o PÚBLICO conseguiu identificar. Mas quem estava lá por convicção era os que venderam o carro e a mobília para viajar para o Brasil.

Freddy, Peni, Epeli têm histórias semelhantes dos sacrifícios e poupanças que fizeram para estarem ali e, depois da final, garantem vão festejar com jogadores. “Conhecemo-los bem e vamos agora ter com eles”, diz Freddy, o volumoso fijiano empregado de hotel, já com muitos daqueles copos de colecção que se dão nos pontos de venda olímpicos de comida e bebida – recebe-se um copo com um pictograma de uma modalidade diferente por cada cerveja que se pedir.

Agora era tempo de festa para toda a gente, para Freddy e os amigos, para os 900 mil fijianos que estavam 15 horas à frente no meio do Pacífico, para o primeiro-ministro do país, que estava em Deodoro, e para os jogadores, que podem finalmente desopilar depois de um regime espartano imposto pelo seu treinador britânico Bem Ryan, que lhes tirou os telemóveis e outros gadgets e insistiu numa dieta rigorosa. Osea Kolinisau, o capitão fijiano, já sabia o que iria comer assim que saísse dali. Numa palavra. “McDonalds”. “Temos um na aldeia olímpica, mas não estávamos autorizados a ir”, dizia Kolinisau. Foi mais de uma semana, diz Kolinisau, a passar à porta do restaurante e ter nesta tentação em forma de hamburger uma motivação extra para o ouro. “Os rapazes dizam, ‘Ok, fica aí McDonalds, quando acabarmos, passamos por cá’. Agora, só me apetece mesmo é comer um Big Mac”, admitiu o capitão fijiano.

Descalços na rua

Os sevens são uma religião nas Fiji. “Quando estou a ir para o trabalho, passo por 50 aldeias e estão todos a jogar na rua”, diz Ben Ryan, o treinador inglês que deu um extra de competitividade à equipa fijiana, viajando para o Pacífico Sul depois de ter comandado os sevens britânicos durante seis anos. E muitos dos jogadores abdicaram de lucrativos contratos fora do arquipélago para se manterem focados no objectivo olímpico. Muitos deles complementam o râguebi com empregos normais. No grupo, há guardas prisionais, oficiais do exército, polícias, empregados de hotel, agricultores de cana do açúcar, e até alguns desempregados – apenas quatro dos 12 jogam fora das Fiji.

“Não estão lá pelo dinheiro”, garante Peni, que também veio das Fiji e que, depois da festa, iria voltar para casa num longo périplo com duas escalas pelo meio. Peni descreve aquilo que deve ser a infância de todos os habitantes do arquipélago, meninos e meninas – a selecção feminina das Fiji também esteve no Rio, chegando aos quartos-de-final. “Nas Fiji, jogamos râguebi na rua descalços para endurecer a pele das plantas dos pés”, explica Peni para reforçar a importância dos sevens no seu país. Diz que já chegou a jogar, mas isso era “há 25 quilos atrás”. Dá uma enorme gargalhada quando lhe perguntamos se são 25 quilos a mais ou a menos. “Quando há igreja e râguebi, a igreja espera”, garante.

Esta era uma medalha de ouro anunciada para as Fiji, que venceram o World Series de râguebi sevens nas últimas duas temporadas. Mas não deixa de ser um feito inédito para uma nação com um nulo historial olímpico e com representações que quase nunca chegam aos dois dígitos. Em 13 edições dos Jogos Olímpicos de Verão, as Fiji tiveram um total de 79 atletas, o que dá uma média, em números redondos, de seis atletas por comitiva, e no Rio tiveram 54 atletas, um número explicado pelas duas selecções de sevens e pela selecção masculina de futebol, que fez exactamente o contrário do râguebi, foi a pior do torneio (ver texto nestas páginas).

“Obrigado ao Comité Olímpico Internacional por ter escolhido o râguebi sevens para os Jogos”, agradecia com um enorme sorriso Frank Bainimarama, o tal primeiro-ministro que anunciou a convocatória pela televisão. “Nas Fiji, já estão em festa há três dias”, disse o governante fijiano já depois da cerimónia de entrega das medalhas, e em que os 12 jogadores que estavam no lugar mais alto do pódio se ajoelharam para receberem o ouro da Princesa Ana, membro da família real britânica (e do COI, para além de ter sido atleta olímpica no hipismo). Daqui a quatro anos, em Tóquio, é provável que muitos deles estejam no mesmo lugar e com uma rodela do mesmo metal ao pescoço. Quando voltar a casa, Freddy, vai tentar comprar um carro barato, mas já sabe que em 2020 vai ter de o vender outra vez.

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