A longa viagem de Eusébio, da Mafalala ao Panteão, com passagem pelo mundo

Um ano e sete meses depois da sua morte, o Pantera Negra foi colocado ao lado dos grandes de Portugal.

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O dia em que Eusébio entrou no Panteão Nacional Nuno Ferreira Santos
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Foi uma longa viagem a de Eusébio da Silva Ferreira, quarto filho de Laurindo e Elisa, marido de Flora, pai de Sandra e Clara. Começou na Mafalala, bairro pobre na periferia de Lourenço Marques, Moçambique, e terminou no Panteão Nacional, em Lisboa. Pelo meio, em 71 anos, passou pelo mundo. Aquele que é considerado o melhor futebolista português repousa fisicamente, a partir desta sexta-feira, no lugar reservado aos grandes de Portugal, na sala 3, ao lado de Sophia de Mello Breyner, Humberto Delgado e Aquilino Ribeiro.

O que pensaria Eusébio disto tudo? Palavra a João Malheiro, biógrafo e amigo daquele a quem um dia chamaram “Pantera Negra”? “Se em vida lhe dissessem que vinha para o Panteão, diria, ‘Seria uma honra, mas não quero’. Talvez por ser muito humilde e preferir, diria, outros palcos, embora este seja um palco especial. O que sublinho é que, em torno de Eusébio, há uma grande unanimidade em todos os níveis”, diz João Malheiro, sobre uma honra que surge um ano e sete meses depois da morte de Eusébio, a 5 de Janeiro do ano passado.

Unanimidade. Talvez seja mesmo essa a palavra para descrever o sentimento nacional em torno de Eusébio, presente em todos os discursos da cerimónia em que estiveram presentes cerca de 600 pessoas, fora os jornalistas e quem assistia das varandas e atrás das barreiras de segurança que as autoridades colocaram nos pontos de acesso ao Panteão. Aliás, a imagem que decorava a esplanada do Panteão não era Eusébio com o emblema do Benfica, mas com as quinas da selecção portuguesa.

“Verdadeiramente, uma figura nacional” e “transversal a divisões ideológicas ou simpatias clubísticas”, disse o Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, no seu discurso, que decorreu com um som de fundo composto por assobios e palavras — quase todas nada perceptíveis, mas uma frase bastante audível, “vai mas é trabalhar”. Cavaco Silva não se incomodou, subiu um pouco o tom de voz, os assobios acabaram por se desvanecer e terminou com um “muito obrigado” a “um português excepcional e raro”.

Estavam lá os principais representantes da nação, Aníbal Cavaco Silva, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, a Presidente da Assembleia da República Assunção Esteves. Também muita gente ligada ao futebol, sobretudo do Benfica, como Luís Filipe Vieira, Rui Vitória, Rui Costa, antigos colegas, como José Augusto ou António Simões, gente de outros clubes como os sportinguistas Manuel Fernandes e Hilário Conceição ou o portista António Oliveira, ou gente da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), como Fernando Gomes, Humberto Coelho, Fernando Santos ou João Vieira Pinto.

Ouviu-se duas vezes o hino nacional durante a cerimónia. Dulce Pontes transformou uma marcha num fado, a banda da GNR tocou a música sem que ninguém a tivesse cantado. Rui Veloso também evocou Eusébio com as músicas “Não me esqueci de ti” e “África”. Os interlúdios musicais iam separando os discursos. O primeiro, o mais emocional e o menos institucional, foi de António Simões, a quem Eusébio chamava o seu “irmão branco” e que o acompanhou desde que ambos eram jovens a despontar no Benfica, até ao final de carreira de ambos no futebol norte-americano.

O antigo extremo do Benfica até começou por pedir desculpa por estar de óculos escuros, mas explicou que tinha uma má relação com a claridade. Mas depois, esteve cerca de dez minutos a ler o elogio fúnebre que levou algum tempo a fazer, como o próprio reconheceu, “um dos desafios mais emocionantes” da sua vida. “Eusébio não morreu, só se ausentou fisicamente. Com o seu afastamento, nós é que morremos em parte. No meu caso, uma grande parte. A eternidade rima com ele, rima com imortalidade. Enquanto a bola chora — toda a bola chora —, recordamos o seu sorriso generoso e o sorriso à bola, expressão da nossa tão querida portugalidade”, disse Simões.

“Eusébio era desigual. Ele tinha o que nós não tínhamos. Ele era ele, sempre de todos nós. Ele era ele, sendo mais do que todos nós — com a sua educação, talento, génio em momentos inigualáveis de futebol. Era arte, cultura, deslumbramento absoluto”, referiu Simões, também se referindo a Flora, mulher de Eusébio, como “uma mulher ternurenta e cúmplice”.

Assunção Esteves reforçou a união nacional em torno de Eusébio, frisando a unanimidade da decisão parlamentar para a trasladação dos restos mortais do antigo futebolista do cemitério do Lumiar para o Panteão — o primeiro desportista a receber tal distinção. “A homenagem do parlamento o chama para a celebração de todos os consensos, porque ele sintetiza o reconhecimento unânime do valor, a pura concordância acima de todas as preferências particulares”, referiu a presidente da AR, destacando ainda o papel de Eusébio em dar a conhecer Portugal quando este era um país fechado por uma ditadura.

“Eusébio deixava-nos ver as incoerências de um regime político injusto e triste que o venerava sem venerar a sua origem, que o levava ao mundo, mas se fechava ao mundo. Voamos então com ele para fora do meio campo, voamos com ele para a liberdade, contra todas as barreiras, da baliza, do ódio, da injustiça. Não é apenas o futebolista intemporal, ele é acima de tudo o homem e o cidadão intemporal”, acrescentou.

De todos os presentes, Hilário terá sido aquele que conheceu Eusébio durante mais tempo. Eram os dois vizinhos em crianças na Mafalala. “Nascemos na mesma rua. A minha mãe era amiga da mãe dele. Em criança, só queria jogar à bola, como eu. Ao longo da vida estivemos sempre próximos, mesmo nas viagens da selecção, ficava sempre no mesmo quarto que ele”, conta o antigo defesa-esquerdo do Sporting.

Hilário é a prova de que o que a amizade uniu o futebol nunca conseguiu separar. A rivalidade era entre ele e Eusébio apenas uma questão de camisolas, nunca pessoal: “Depois dos Sporting-Benfica, íamos sempre almoçar ou jantar, nunca houve rivalidade entre nós. Com a Flora também. Até moramos perto, a minha família e a dele. O Eusébio é que agora fugiu um bocadinho.” Hilário acompanhou Eusébio até ao repouso dos heróis, mas ainda sem acreditar que o seu amigo da Mafalala partiu, como se esta cerimónia tivesse sido mais uma despedida. “Custou-me muito. Passou por mim na igreja, eu a imaginar o Eusébio dentro daquele caixote… Vieram-me lágrimas aos olhos.”

Garrett, Amália, Camões, Sophia. Nomes próprios ou apelidos que não precisam de companhia de outro nome para sabermos quem são, aqueles que, como escreveu um deles, se libertaram da lei da morte por “obras valerosas”. Eusébio também não precisa de apelido. É um deles.

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