“Era natural que Mourinho pensasse que ia ser o Rei-Sol no Real Madrid”

Diego Torres, jornalista do diário El País, descreve no seu livro a tensão diária que o Real Madrid terá vivido com José Mourinho, o técnico que “acha que está acima de todos menos de Jorge Mendes”.

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Miguel Manso

Através de testemunhos (anónimos) de dirigentes, empregados e jogadores do Real Madrid, o jornalista Diego Torres traça um retrato dos anos do clube sob a orientação de José Mourinho. Em A guerra de Mourinho, que a Lua de Papel acaba de editar em Portugal, é exposto o calculismo que lhe é reconhecido, mas também traços de crueldade do treinador português para com os seus próprios jogadores. Uma figura polarizadora até ao fim.

Como foi recebido o livro em Espanha?
Alguns gostaram muito do livro e outros acham-no execrável. Todos os temas que se relacionam com Mourinho tendem a estimular o extremismo.

Teve alguma reacção do Real Madrid, de José Mourinho ou de Jorge Mendes?
O círculo de Mourinho disse que é tudo mentira e que eu sou um mentiroso. Que o livro é um compêndio de histórias para crianças.

Houve alguma pressão para que o livro não fosse publicado?
Não.

Nunca pôde entrevistar José Mourinho, apesar dos pedidos.
Pedimos uma entrevista mas ele não quis dá-la. Tratou a imprensa espanhola com muita frieza, o El País e eu não fomos uma excepção.

O livro seria diferente se tivesse tido essa entrevista?
Possivelmente, sim. Mas não era imprescindível entrevistar Mourinho para fazer o livro. Eu tinha interesse em contar a história de Mourinho através dos olhos das pessoas que trabalharam e sofreram com ele. Já sabia qual é a versão de Mourinho, porque em redor dele há um aparelho de propaganda incrível, organizado por Mendes, pelo próprio Mourinho e pelo Real Madrid. Se eu tivesse falado com ele possivelmente não seria muito relevante, porque Mourinho só fala do que ele quer falar.

O que gostaria de lhe perguntar?
Por exemplo, perguntava-lhe se alguma vez obteve benefícios económicos da sua relação com Jorge Mendes, ou da contratação de determinados futebolistas, tanto no Chelsea como no Real Madrid. E também lhe perguntava se não era demasiado evidente que o conflito de interesses que havia entre a sua posição de treinador do Real Madrid e a relação de amizade e profissional com Jorge Mendes ia provocar um desequilíbrio dentro da equipa.

A relação entre Mourinho e Mendes é uma relação entre iguais?
Mendes é claramente dominador, Mourinho trata-o como superior. Ele acha que está acima de todos, menos de Jorge Mendes. Aí reconhece que tem um limite.

Porque é que Mourinho acreditava que ia ser uma espécie de Rei-Sol do Real Madrid, com poder absoluto?
Em 2010, o Real Madrid era a instituição desportiva mais rica do mundo, com receitas brutas de 500 milhões de euros. Isso dá-lhe um poder único na história do desporto. E Mourinho tinha conseguido títulos em todos os clubes por onde tinha passado. Tinha acabado de conquistar a segunda Liga dos Campeões, com o Inter de Milão. Isso fê-lo pensar que tinha um poder que roçava a magia, que era um predestinado e que a sua fórmula era infalível. Era natural que ele pensasse que ia ser o Rei-Sol.

Poderá ter menosprezado a dimensão do desafio?
Um pouco. A sensação de poder afastou-o da realidade. Este desfasamento entre o que sentia e o que estava a acontecer, em última análise, leva-o ao fracasso. Ganha uma Liga e uma Taça, mas em balanço é um fracasso, tendo em conta as expectativas e os meios à sua disposição.

É difícil conceber a violência psicológica e os esquemas a que recorria para manipular os jogadores descritos no livro.
Creio que é comum que os treinadores manipulem os futebolistas. Mourinho leva-o a um extremo. É excessivo e transgressor. A mim também me surpreendem as coisas que descobri e compreendo que a resposta do leitor seja a incredulidade. O transgressor tem vantagem sobre quem cumpre as regras, conta sempre com o factor surpresa a seu favor. Neste sentido, Mourinho parte sempre com certa vantagem porque concebe o futebol e a competição como um jogo de transgressão. Interpreta o futebol no limite do regulamento e tenta ultrapassar esse regulamento.

Sentia-se impune?
Actuou sempre com impunidade e Florentino Pérez apoiou-o até às últimas consequências. Florentino gostava de tudo em Mourinho, excepto o futebol que a equipa jogava. Aborrecia-o. Mas para Florentino o futebol é o menos importante. Em caso de fracasso, Florentino sabia que Mourinho ia encarregar-se de encontrar culpados externos. Que metesse o dedo no olho do rival, que maltratasse alguns futebolistas, que se comportasse como um déspota, isso tanto fazia. E atraía-o muito a ideia de um treinador implacável com os jogadores. Florentino Pérez sente um desprezo secreto pelos futebolistas, acha que são empregados que devem submeter-se. Ele via em Mourinho o homem capaz de converter os futebolistas em marionetas.

E como está agora o ambiente no balneário do Real Madrid?
O ambiente é bastante bom, em comparação com as épocas de Mourinho, mas a passagem dele pelo Real Madrid deixou uma fractura entre os jogadores e o presidente. Os futebolistas sentem-se atraiçoados pelo presidente, por ter permitido que um treinador os maltratasse como Mourinho maltratou. E Florentino tentou forçar até ao fim a situação com Cristiano Ronaldo. Não queria renovar-lhe o contrato, queria substituir Cristiano Ronaldo por outra grande estrela: Gareth Bale. Mas Cristiano é demasiado importante e demasiado popular e Florentino não teve mais remédio senão renovar o contrato. Mas há um ressentimento entre os dois.

Onde fica Carlo Ancelotti no meio disso?
Ancelotti é um empregado que faz um trabalho e cumpre ordens. Tem voz, deixam-no opinar. Mas a decisão final é tomada por Florentino. Ancelotti não decide quem é o guarda-redes e também não decide as contratações. Não é Ancelotti quem contrata Bale, foi Florentino Pérez. Florentino gostaria que Ancelotti lhe ligasse todos os dias para perguntar quem devia jogar. Esse é o sonho de Florentino, acha que sabe de futebol. Teve uma relação magnífica com Mourinho. Intimidava-o, mas chegaram a entender-se muito bem. Não se atrevia a fazer coisas com Mourinho que faz com Ancelotti, mas entendeu que a relação com Mourinho era satisfatória, trazia-lhe muitas vantagens. E admirava-lhe o autoritarismo.

Conta no livro que, no dia em que soube que David Moyes era o sucessor de Alex Ferguson no Manchester United, Mourinho ligou para a Gestifute em lágrimas. É um lado frágil desconhecido.
Mourinho é imaturo, na medida em que sente pânico perante o fracasso e a perda. Parte do seu segredo, enquanto treinador de êxito, é esse desespero com o qual luta contra o fracasso. Ele não gosta de futebol, gosta de ganhar. No futebol, de alguma forma, Mourinho encontrou um lugar onde parecia que ganhava sempre. Ele vivia essa fantasia e chegou a acreditar que era incapaz de perder.

Não ser escolhido para o lugar de Alex Ferguson foi uma grande desilusão.
A figura de Ferguson é tão poderosa que ele deixou-se fascinar. É o pai do futebol, que te diz que és o seu filho favorito. É uma interpretação freudiana, mas evidentemente Mourinho queria ocupar o lugar do pai. E está no futebol para ocupar o lugar do pai. Mourinho é treinador porque o seu pai era treinador. Entra no mundo do futebol com um certo ressentimento porque não conseguiu ser futebolista profissional. Continua a olhar os futebolistas com desdém. Como Florentino. Partilham uma visão depreciativa dos futebolistas.

Mas precisa deles para ganhar.
Esse é o drama. A tragédia de Mourinho é que necessita desses seres desprezíveis que são os futebolistas para ser algo. Apesar de procurar mantê-los num segundo plano. Gosta de futebolistas que aceitem a sua inferioridade perante a autoridade do treinador.

Depois do Real Madrid, regressar ao Chelsea, um porto seguro, era o destino lógico para Mourinho?
Sim. Ele tinha a possibilidade de ir para o Paris Saint-Germain, mas em Inglaterra há muito dinheiro e notoriedade. Há duas coisas que atraem Mourinho: o dinheiro e a fama. E em nenhum lugar do mundo o idolatram tanto como em Inglaterra. Tanto os adeptos como a imprensa.

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