Em nome do pai

A história do clã Srna é uma espécie de tragédia shakespeariana, mas o capitão da Croácia transformou-a numa fonte de inspiração. Quer conquistar o Euro e dedicá-lo ao pai, falecido durante o torneio

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Srna é a alma da selecção croata NICOLAS TUCAT/AFP

Uzeir tinha quatro anos quando a II Guerra Mundial terminou. O conflito devastador deixou-o órfão e indefeso na sua Bósnia natal. A mãe e a irmã foram queimadas vivas por paramilitares sérvios; o pai foi mortalmente baleado pouco tempo depois. Foi adoptado e, mais tarde, fixou-se na Croácia, onde casou e constituiu família. Morreu a 12 de Junho, no mesmo dia em que o filho ajudava a selecção croata a vencer a Turquia, na partida de estreia do Euro. Darijo Srna foi ao enterro do pai, que idolatrava, mas regressou para defrontar a República Checa e chorou enquanto escutava o hino do seu país, no estádio de Saint-Étienne.

A história dos Srna parece retirada de uma tragédia de William Shakespeare, fundida com alguns parágrafos de Charles Dickens. Foi sempre uma fonte de inspiração para Darijo ultrapassar as dificuldades e triunfar. Emotivo, com um enorme coração, o capitão da Croácia é também um lutador, com um carácter inquebrável e um líder dentro e fora dos relvados. Aos 34 anos, continua a ser uma fonte de inspiração para a selecção balcânica e um herói no seu país.

A epopeia desta família é uma espécie de paradigma das tragédias que flagelaram as repúblicas da ex-Jugoslávia ao longo do século XX. Nascido em 1941, no leste da Bósnia-Herzegovina, Uzeir Srna, ainda era recém-nascido quando a sua aldeia, Gornji Stopici, foi atacada por forças nacionalistas sérvias (os chetniks). Conseguiu fugir com o pai e o irmão mais velho, mas a mãe, grávida, e a irmã não tiveram a mesma sorte. Foram barbaramente assassinadas quando os agressores incediaram a casa onde viviam.

Separação e reencontro

No meio do caos instalado, Uzeir foi parar a Sarajevo, onde acabou separado da família que lhe restava. Pouco depois, o pai foi morto por uma bala perdida e, ao mesmo tempo, perdeu o rasto do irmão, Safet. No final do conflito foi parar a um lar para órfãos de guerra no norte da Eslovénia, onde seria adoptado pela família de um chefe da polícia local.

Safet nunca desistiu de encontrar o irmão mais novo. Com o fim da guerra integrou o exército da nova República Popular Federal da Jugoslávia, sob as ordens de um superior esloveno, a quem contou a sua história. Por uma incrível coincidência, o comandante do pelotão conhecia uma família que tinha perfilhado uma criança, com a mesma idade que teria Uzeir, a quem rebaptizaram de Mirko Kelenc. Foi uma pincelada de sorte no meio de tanta desgraça. Safet procurou a ajuda da Cruz Vermelha e acabou por reencontrar o irmão.

Ambos regressaram à Bósnia, onde Uzeir passou a frequentar a escola e, mais tarde, tornou-se padeiro. Anos depois, explicaria que escolheu esta profissão por ter passado fome durante toda a sua vida. Com o primeiro salário, Uzeir partiu para Sarajevo, onde começou a jogar futebol, como guarda-redes, num pequeno clube local. Chamou a atenção e foi contratado pelo Celik, onde foi quase sempre suplente, até um golpe de sorte alterar outra vez a sua vida.

Durante uma partida amigável com o Neretva, um clube de Metkovic, no sudeste da Croácia, o guarda-redes da equipa adversária lesionou-se e Uzeir foi “emprestado” para o substituir até ao final do encontro. Acabou por convencer e já não regressou à Bósnia, instalando-se definitivamente nesta cidade, onde iria nascer Darijo Srna, em 1982.

Numa família em que o dinheiro não abundava, o futuro internacional croata teve de contribuir cedo para a economia doméstica, vendendo vegetais no mercado local. Com o dinheiro que foi poupando comprou o seu primeiro par de chuteiras, mas Uzeir reagiu mal, por achar que Dajiro estava a desprezar os estudos. “Ele ficou com raiva e foi devolver as chuteiras à loja, mas depois voltou com as melhores botas da Adidas que eles tinham”, recordou mais tarde o jogador.

O investimento acabou por ser recompensado, com Dajiro a ser recrutado pelo Hadjuk Split, com apenas 13 anos. Entretanto, a guerra que desmembrou a Jugoslávia trouxe novas dificuldades aos Srna, com o clube a marginalizar a jovem promessa face às suas origens bósnio-muçulmanas. A sua determinação e talento acabariam por se impor ao preconceito e Srna tornou-se num dos mais cotados futebolistas do país.

Em 2013, com 21 anos, aceitou o convite dos ucranianos do Shakhtar Donetsk, naquela que foi a primeira grande contratação de um clube que pretendia ascender à elite europeia. Em 13 temporadas na Ucrânia conquistou uma Liga da Europa, oito campeonatos, cinco taças e sete supertaças. Afirmou-se também como um dos melhores laterais direitos europeus, embora tenha começado a carreira como médio-ala.

Novo país outra guerra

Mas nem aqui a guerra deixou de perseguir o clã Srna. Com o início do conflito civil no leste ucraniano, em 2014, o Shakhtar foi obrigado a deixar as suas instalações em Donetsk, mas Dajiro nunca equacionou abandonar o clube e o país, ao contrário de muitos dos seus colegas. A lealdade tornou-o num símbolo e fonte de inspiração para os mais jovens que chegam à equipa.

O mesmo se passa na selecção, onde se estreou em 2002 e é recordista de internacionalizações, somando neste sábado a sua 133.ª, frente a Portugal. Com a idade perdeu alguma velocidade, mas não a eficácia. Continuam a sair do seu pé direito cruzamentos preciosos, que inúmeras vezes são transformados em golos, como o que marcou Modric frente à Turquia, na estreia da equipa no Euro 2016. Apelidado de “Beckham dos Balcãs” é igualmente letal nos lances de bola parada. Soma 22 golos ao serviço da Croácia.

A determinação e dedicação à camisola é a sua imagem de marca. É um lutador, nunca desiste de um lance e parece imparável. A um ponto que levou Slaven Bilic, ex-seleccionador croata, a defini-lo como “Robocop”, antes de lhe atribuir a braçadeira de capitão, em 2010.

Com uma tatuagem no coração com o nome do irmão, Igor, que sofre do síndrome de Down, e a quem dedica todos os golos que marca, Srna é também um filantropo. Recentemente doou 100 computadores e 20 toneladas de laranjas para as crianças de Donetsk afectadas pela guerra, mas muito do que faz não é do domínio público.

A morte de Uzeir Srna (que sofria de cancro) apanhou-o de surpresa no final da partida com a Turquia. Não escondeu o desgosto, mas, depois do enterro, regressou para enfrentar a República Checa. “Quando estive no funeral do meu pai, em Metkovic, as pessoas disseram-me que o seu último desejo era que voltasse para jogar pela Croácia, naquele que será o meu último grande torneio [irá despedir-se no final do Euro]”, justificou: “Sem a sua dedicação e apoio eu não estaria aqui.”

A perda de Dajiro Srna comoveu todos os seus colegas e reforçou a união da equipa. O capitão anseia agora por um inédito título europeu da Croácia para dedicar ao pai. Parecia um sonho improvável no arranque do torneio, mas os sonhos de Srna tendem a tornar-se realidade.

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