Desporto e apostas desportivas: construir a confiança perante valores em crise

A fraude desportiva e os fenómenos de criminalidade associados ao desporto corroem os seus valores universais.

O recente avolumar de episódios de manipulação de competições desportivas, em diversas modalidades, a nível nacional e internacional, traduzem  vulnerabilidades preocupantes no sistema desportivo e no mercado de apostas particularmente apetecíveis a sofisticadas redes transnacionais de criminalidade organizada que aqui encontram terreno fértil para obterem lucros elevados com risco reduzido, numa alternativa profícua, e menor censura social, que a prostituição, ou ao tráfico de droga, armas e seres humanos, onde tradicionalmente operam.

A fraude desportiva, a manipulação de competições, e os fenómenos de criminalidade associados ao desporto, corroem os seus valores universais e comprometem o inestimável potencial de coesão social através dos princípios de respeito, integridade, solidariedade e não discriminação.

Porém, outros valores, mais tangíveis, colapsam perante esta vaga de criminalidade, para além dos danos reputacionais irreparáveis: Adeptos, patrocinadores e operadores televisivos são defraudados e perdem o interesse no investimento afectivo e financeiro. Os consumidores de apostas desportivas perdem a confiança nos operadores licenciados e vêm o seu dinheiro desviado por quem manipula as competições.

Trata-se, pois, de um complexo problema de ordem pública que compromete a integridade do desporto e a sua sustentabilidade financeira, bem como a viabilidade económica do mercado de apostas desportivas e a proteção dos consumidores - particularmente os mais vulneráveis – numa equação em que invariavelmente são os agentes desportivos o elo mais fraco a responder perante a justiça, entre toda uma cadeia criminosa cujos líderes permanecem impunes às malhas da lei.

Com efeito, face a uma ameaça desta dimensão, estimando-se que anualmente branqueie no mercado de apostas mais de 140 biliões de dólares e redistribua os respetivos proveitos no financiamento a outras atividades criminosas, afigura-se determinante concertar uma estratégia global que capacite desportistas, apostadores, reguladores, autoridades públicas e operadores a reportar, reconhecer e resistir à manipulação de competições, transmitindo uma mensagem clara que associar o crime a esta atividade não compensa.

Por isso, a salvaguarda da integridade do desporto foi incluída no comunicado oficial saído da Cimeira Internacional Anti-Corrupção realizada em Londres no passado mês de maio, onde vários líderes mundiais apelaram para a corrupção no desporto ser “...decisivamente abordada através de uma resposta coordenada...” instando as organizações desportivas a “reforçarem a sua transparência e melhorar a sua governação cumprindo as melhores práticas globais”.

O Movimento Olímpico e Desportivo, encabeçado pelo Comité Olímpico Internacional e a generalidade das Federações Internacionais, em parceria com órgãos internacionais de policia criminal, como a Interpol, autoridades governamentais, instituições europeias e organismos representantes de reguladores e operadores do mercado de apostas encetaram em 2012 uma iniciativa conjunta envolvendo 36 países e 28 organizações desportivas tendo em vista a adopção do único instrumento vinculativo de direito internacional neste domínio.

A Convenção do Conselho da Europa sobre Manipulação de Competições Desportivas, aprovada em setembro de 2014, e ratificada pelo Estado Português através do Decreto do Presidente da República n.º 92/2015, reitera como primordial neste combate a eficácia na troca de informações entre aqueles parceiros através de uma plataforma nacional destinada a coordenar a luta contra a manipulação de competições desportivas.

Persistir na desvalorização desta ameaça e adiar a implementação deste instrumento primordial, que configura uma obrigação internacional do Estado Português, expõe inapelavelmente as organizações e os agentes desportivos, bem como os consumidores de apostas e os operadores licenciados, ao crime organizado que floresce com a expansão de uma indústria que opera à escala global, online e em tempo real, suportada na mais avançada tecnologia.

Tratando-se, assim, de um problema global, e transversal a vários sectores e atividades económicas, a sua prevenção, detecção e sancionamento não é compagináveis com abordagens sectoriais, pontuais ou meramente nacionais. Muito menos será com a inércia e impassividade.

Na expectativa que as recentes ocorrências despertem consciências para a urgência de uma estratégia de ação concertada, que se concretize para além das vãs palavras de circunstância de intolerância perante estes fenómenos, impõe-se encetar urgentemente as medidas necessárias a capacitar apostadores e agentes desportivos a enfrentar este desafio, restituindo a credibilidade ao desporto e instaurando a confiança junto dos consumidores num mercado de apostas recentemente aberto à concorrência de operadores online.

Director-Geral do Comité Olímpico de Portugal

Fundador do Observatório do Jogo Responsável

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