Caster Semenya venceu e as adversárias não gostaram

Campeã olímpica dos 800 metros continua a ser alvo dos atletas que defendem que o hiperandrogenismo confere à sul-africana uma vantagem competitiva injusta. A IAAF promete regressar aos tribunais para arrumar a questão.

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Lynsey Sharp e Melissa Bishop, à esquerda, não corresponderam ao cumprimento da campeã olímpica Caster Semenya David Gray/Reuters

Correu tudo como era esperado. Na noite de sábado, no Rio de Janeiro, a atleta sul-africana Caster Semenya foi primeira na final dos 800 metros, bateu o seu recorde pessoal e fez o quinto melhor tempo da história desta prova feminina. Cortada a meta, fez questão de tentar cumprimentar todas as adversárias. Mas pelo menos duas – a britânica Lynsey Sharp e a canadiana Melissa Bishop, que ficaram fora do pódio – pareceram acolher friamente ou mesmo ignorar o gesto da campeã olímpica.

Para quem andou desatento, convém explicar que não se tratou apenas de mau perder. Ao longo da carreira fulgurante de Semenya, inúmeras adversárias têm expressado de forma mais ou menos subtil a sua oposição à participação da sul-africana nas provas femininas. Em causa estão os valores de testosterona da atleta, muito superiores aos números considerados normais para uma mulher, e mais próximos dos níveis de um homem, e que a IAAF (Associação Internacional das Federações de Atletismo) entende constituírem uma vantagem competitiva injusta para as demais competidoras.

Semenya, sem ter pedido para estar nesta posição, tem estado no centro de um longo e sensível debate sobre a participação de mulheres com hiperandrogenismo em provas de atletismo. Em 2011, a IAAF aprovou regras que estabeleciam um limite máximo para os níveis de testosterona nas atletas femininas, forçando as mulheres nesta situação a escolher entre uma medicação de supressão hormonal, a remoção cirúrgica de testículos (no caso das atletas intersexuais) ou o abandono da competição. O regulamento acabaria por ser suspenso em 2015, quando uma atleta indiana com hiperandroginismo, Dutee Chand, recorreu para o Tribunal Arbitral de Desporto (TAS, na sigla francesa), demonstrando que a IAAF não tinha fundamentado cientificamente a sua decisão.

Esta suspensão, alegam as adversárias, veio beneficiar Semenya, que desde 2015 tem melhorado espectacularmente o seu desempenho em pista, o que poderia estar relacionado com o abandono da medicação de supressão hormonal. Agora, no Rio, a sul-africana venceu facilmente a concorrência e sagrou-se campeã olímpica.

Após a prova, e questionada pela BBC sobre a polémica, Lynsey Sharp deixou transparecer a sua frustração com a presença de Semenya na prova: “Tentei evitar este assunto o ano todo. Vocês viram quanto me emociona. Nós sabemos o que estávamos a sentir. Isto está fora do nosso controlo e estamos dependentes da forma como as pessoas lá no topo resolverem isto. As pessoas podem ver o quão difícil isto é com a mudança as regras, mas agora tudo o que podemos fazer é dar o nosso melhor”.

No mesmo canal britânico, a recordista mundial da maratona feminina, Paula Radcliffe, defendeu a compatriota. “Por mais que [Sharp] corra e treine, por mais que Jenny Meadows corra e treine, elas nunca vão conseguir competir com aquele nível de força e aquela capacidade de recuperação que aqueles níveis elevados de testosterona permitem”, disse.

Na mesma noite, outro atleta britânico, o velocista Nigel Levine, atacou Semenya no Twitter ao dar os parabéns a Sharp enquanto a “terceira mulher nos 800 metros”. Sharp terminou no sexto lugar. A segunda e a terceira classificada na prova, Francine Niyonsaba do Burundi e Margaret Wambui do Quénia, também têm sido alvos de comentários deselegantes sobre o seu aspecto supostamente pouco feminino. O tweet de Levine acabaria por ser apagado.

Na conferência de imprensa após a final, Semenya, Niyonsaba e Wambui firmaram de forma espontânea um pacto de silêncio sobre a questão, com a campeã olímpica a criticar a insistência dos jornalistas: “Desculpe, meu amigo. Esta noite é sobre a nossa performance. Não estamos aqui para falar da IAAF nem estamos aqui para falar de especulação. (…) Esta conferência de imprensa é sobre os 800 metros que corremos hoje”.

Semenya congratulou-se ainda por ter “marcado a diferença” no Rio de Janeiro. Questionada sobre o que queria dizer com isso, a sul-africana aludiu à polémica que tem sequestrado o seu nome: “Isto é sobre amar-nos uns aos outros. Isto não tem a ver com discriminar pessoas. Não tem a ver com o aspecto das pessoas, a forma como elas falam, como elas correrem ou se são musculadas. É sobre o desporto. Quando sais do apartamento, pensas no teu desempenho, não estás a pensar no aspecto do teu adversário”.

A atleta citou uma conversa que teve com o falecido ex-Presidente sul-africano Nelson Mandela, que lhe disse que “é suposto o desporto unir-nos”.

Em todo o caso, o debate prosseguirá ao mais alto nível. Ainda duas horas antes da final feminina dos 800 metros, o presidente da IAAF anunciou que o organismo mundial do atletismo iria voltar ao TAS para tentar reverter a suspensão do regulamento.

“Este é um assunto muito sensível. Vamos levar o caso de volta ao TAS e será um bom caso baseado em pareceres médicos e científicos”, disse Sebastian Coe.

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