Blink! Porque é Cristiano Ronaldo o melhor goleador do mundo e pode continuar a ser

Colocar Cristiano Ronaldo a ponta-de-lança é deitar fora todo o saber acumulado e prescindir de um dispositivo quase perfeito de marcar golos.

No fim da final com a França, Cristiano Ronaldo (CR), explicou porque é que tinha dito ao Éder que ele iria marcar golo. CR disse mais ou menos isto: “Já cá ando há muitos anos e tive um feeling que ele ia marcar”. Este “feeling” pode traduzir-se por Intuição. A intuição de CR estava certa e Éder marcou. Não faz de CR um bruxo ou um feiticeiro, revela apenas uma característica que faz dele o melhor futebolista do mundo.

Em dois recentes livros, Blink e Outliers, Malcolm Gladwell, um autor Anglo Canadiano, que escreve regularmente na New Yorker, dá-nos as pistas para entendermos o sucesso de CR. A primeira razão todos conhecemos. Resulta da “regra das 10.000 horas” proposta por Gladwell para justificar mestria em qualquer área. Se se pratica mais de 10.000 horas uma actividade consegue-se atingir uma facilidade no domínio dessa atividade que é como se ela se tornasse parte de nós. Todos sabemos que CR se exercita mais que os outros e que já deve ter acumulado bem mais de 10 000 horas a correr, tocar na bola, rematar de cabeça, com os pés e outras partes do corpo e especialmente a participar em jogos.

A segunda explica-se com Blink em que Gladwell explica porque sabemos coisas sem sabermos que as sabemos, chamando-lhe a maior parte das vezes “intuição”, “feeling” no caso de CR. A intuição não passa de uma cultura acumulada sobre uma determinada actividade. MC explica, por exemplo, como um historiador de arte identifica uma peça falsa sem que exista a mínima prova de que é falsa ou como o financeiro George Soros usa dores nas costas e na barriga para decidir os seus investimentos.

Cristiano acumulou muitos jogos e sobretudo muitas finais e meias-finais e jogou com Adebayor, um jogador fisicamente muito parecido com Éder, e acumulou todo o esse conhecimento que fica densamente inculcado e que não é racionalizado e ainda bem. Porque se fosse racionalizado demoraria muito tempo a ser utilizado.

Quem ensina disciplinas artísticas entende este processo porque ele está na base do desenvolvimento de um conhecimento tácito que permitirá ao futuro artista definir o seu estilo por processos de tomada de decisão que se apresentam como intuitivos ou de inspiração mas que são sim muita cultura acumulada e treino.

Mas voltemos a CR. Acho que ninguém duvidará que a grande vantagem de Cristiano é que chega mais rápido à bola que os outros e assim marca 90% dos seus golos (e 90% dos seus golos é muito mais do que equipas inteiras marcam numa época). Muitos atribuem isto ao ginásio, à sua força e velocidade explosiva mas o segredo não reside aí. Se assim fosse Usain Bolt seria o melhor futebolista do mundo. O documentário “Ronaldo Tested to the Limit” no capítulo “mental ability” mostra como mesmo às escuras CR marca golos a partir de centros. Acho que a sua mental ability já evoluiu para uma plataforma mais elevada onde os aspectos estratégicos também contam.

O que acontece é que CR “planeia” a sua acção usando o seu “feeling” e beneficiando da sua facilidade física. O seu corpo é muito facilmente comandado a 1000 à hora, que é a velocidade a que as suas decisões são tomadas com base num “plano”. As suas “improvisações”, como toques de calcanhar, resultam muitas vezes porque se enquadram no seu “plano”. Muitos se admiraram porque CR falhou dois remates aparentemente fáceis quase isolado e em boa posição para marcar. O que se passou é que essa não é a situação em que se sente mais confortável porque os seus planos são normalmente exercidos com dominância da visão (que também funciona a mil à hora) e essas situações obrigaram a tomadas de visão contraditórias.

Um “plano” de CR nasce normalmente da meia-esquerda de onde pode observar a jogada a desenrolar-se e tomar as suas decisões do mesmo modo que um predador as toma. A partir da meia-esquerda, se CR olhar directamente para a baliza, sem quase movimentar a cabeça, abarca a parte mais importante da jogada de ataque em que irá participar. Manter a cabeça e os olhos sem movimentos contraditórios reforça-lhe o foco quando corre à máxima velocidade. E porquê a meia-esquerda e não a meia-direita? Pela razão simples que 80% dos seus colegas são destros e será da direita que virão a maioria dos passes de qualidade, e será com o seu pé direito que rematará, mais cedo do que se fosse com o esquerdo.

Nos dois famigerados falhanços, uma vez que partiu do centro e acorreu a bolas que lhe foram enviadas das costas, CR teve que movimentar-se rapidamente em direcção à baliza, olhar para trás e para o alto, olhar para a frente para ver o caminho, olhar para o lado para ver a bola, olhar para a frente para ver o guarda-redes, olhar para o lado e para baixo para rematar. Tente o leitor fazer isto parado e veja como perde coordenação. Agora imagine fazê-lo a sprintar… A situação, típica de um ponta-de-lança não faz parte no processo mais “letal” de CR em que tudo o que é importante está no seu campo visual na direcção do seu movimento. O mapa do campo e de todos os seus colegas e adversários vai fazer parte do seu “plano”.

Desde os anos sessenta do século passado, o psicólogo JJ Gibson chamou a atenção para o “optical flow”. Nós não vemos em imagens separadas mas sim num fluido e movimentamo-nos com pistas externas e internas. Como um condutor de fórmula 1, CR usa este flow no limite máximo somente comparável aos grandes predadores.

O que se deve concluir deste pequeno exercício teórico é que CR é realmente letal quando parte da sua posição de “observação da caça”, a meia-esquerda. As suas principais acções de bola corrida neste Europeu mostram isso: O passe para Nani e o seu golo de calcanhar.

Na posição “incómoda” em que jogou ganhámos um outro CR, mais solidário, um excelente jogador, sem dúvida, mas longe do terminator que todos conhecemos do Real Madrid. (Benitez também lhe inventou uma posição incómoda e Ronaldo perdeu meia época e Benitez o emprego). Ao contrário do que a maioria defende, Ronaldo deve partir cada vez mais de trás à medida que a sua experiência vai ser parte do seu processo de jogo.

Colocar CR a ponta-de-lança é deitar fora todo este saber acumulado e prescindir deste dispositivo quase perfeito de marcar golos.

Professor e Investigador no IADE - Universidade Europeia

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