Billy Gonsalves: o “Pelé” do soccer americano é luso-americano

Brilhou nos mundiais de 1930 e 1934, recebeu convites para jogar no Brasil e em Itália e é considerado o melhor futebolista do século XX nos EUA. A história pouco conhecida da lenda do soccer que era filho de pais madeirenses recém-chegados à América.

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Billy Gonçalves, o segundo a contar da esquerda na fila de baixo, com a camisola da selecção norte-americana DR

Quem o viu jogar comparou-o, mais tarde, a Pelé. Hoje em dia, apelidam-no de “Babe Ruth” do soccer, numa alusão aquele que, para muitos, foi o melhor jogador de basebol de todos os tempos. Sem o reconhecimento de outras grandes lendas dos mais mediáticos desportos americanos, a sua memória começa agora a ser progressivamente recuperada. Falamos de “Billy” Gonsalves. Ou melhor de Adelino Gonçalves, filho de imigrantes madeirenses chegados aos EUA nos alvores do século XX. O PÚBLICO recorda um dos melhores futebolistas americanos da história, numa altura em que a selecção portuguesa, liderada por outra grande estrela madeirense, inicia um estágio por paragens onde “Billy” impôs o seu reinado.

Era imponente no alto dos seus 1,88 metros, tinha um remate temível com ambos os pés, imbatível nas alturas, com grande visão de jogo e uma precisão cirúrgica nas assistências que faziam brilhar o menos dotado goleador. Gonsalves era assim. As memórias dos seus contemporâneos estão recheadas de lances de sonho ou proezas assombrosas, como daquela vez em que Billy atirou uma bola com tal força à barra da baliza adversária, que ela foi devolvida pelo ar e só voltou a tocar no chão já muito para lá do meio-campo. O seu pontapé canhão era o terror dos guarda-redes. E as histórias sucedem-se, com colegas de equipa e treinadores sempre rendidos ao talento do jogador nascido em Portsmouth, no Estado de Rhode Island, a 10 de Agosto de 1908, pouco depois dos seus pais, Adelino e Rosa, terem trocado a ilha da Madeira pela promessa do “sonho americano”.

“Ele foi claramente o melhor jogador americano do século XX. Landon Donovan [conhecido avançado americano que já representou o Bayer Leverkusen, Bayern Munique e Everton, actualmente com 32 anos e que causou surpresa ao ser excluído recentemente para o Mundial do Brasil] ultrapassou-o e Michael Bradley [médio, que alinhou no futebol europeu pelo Borussia Monchengladbach, Aston Villa, Verona e Roma] está a morder-lhe os calcanhares. Mas eu descreveria confortavelmente Billy como o segundo maior jogador americano de todos os tempos”, assegurou ao PÚBLICO Stephen J. Holroyd, advogado e escritor norte-americano que tem investigado os primórdios do futebol no seu país, com várias contribuições para o American Soccer History Archives e colaborador regular da revista Soccer History.

Tal como muitos outros portugueses, principalmente açorianos e madeirenses, os pais de Billy, Agostinho e Rosa, foram atraídos pela América no início do século passado. Chegaram a Nova Iorque em 1906 e rumaram imediatamente para a Nova Inglaterra, mais a norte, atraídos pela florescente indústria têxtil na região. O jovem Adelino, o sétimo filho do casal, nasceria dois anos depois e iria mudar-se com a família, pouco tempo depois, para Fall River, no vizinho Estado de Massachusetts, onde se reunia a mais numerosa comunidade imigrante portuguesa nos EUA, em particular açorianos.

Desde cedo, o jovem Gonçalves foi atraído pelo desporto em geral e não apenas o futebol. Na sua juventude foi um promissor pugilista amador e um talentoso jogador de basebol, mas seria o soccer a conquistar definitivamente a sua preferência e exclusividade. Com apenas 14 anos iniciaria a carreira por alguns clubes modestos de Fall River, onde alinhavam muitos imigrantes escoceses e ingleses e seus descendentes. Cedo lhe impuseram a alcunha mais anglo-saxónica de Billy e maquilharam-lhe a cedilha de Gonçalves com um “s”.

As histórias sobre a qualidade e o remate canhão do jovem luso-descendente começaram a circular na região e rapidamente despertaram a atenção de clubes de maior dimensão, como o Lusitânia Recreation Club of East Cambridge (também denominado Lusitânia Football Club, que representava a comunidade portuguesa na região), que o contratou para a temporada de 1927. Aqui, Gonsalves estabeleceu-se ao nível semiprofissional, liderando a equipa aos títulos de Boston e da liga distrital. Estavam abertas as portas para aventuras de maior dimensão.

A “era dourada”

O soccer vivia nos EUA uma “era dourada” nos anos de 1920, num período que marcou a primeira tentativa real de implementar este desporto no país. Nesta fase pioneira, a American Soccer League (ASL: antecessora da NASL dos anos de 1970 e 1980 e da actual MSL, que procurou criar as bases para uma competição verdadeiramente nacional) era o principal campeonato norte-americano, onde alinhavam as mais fortes equipas nacionais. Não faltavam investidores, nomeadamente entre os mais bem-sucedidos empresários da região, a maioria imigrantes ou seus descendentes, que queriam recriar na América uma versão local dos saudosos e competitivos campeonatos que eram disputados um pouco por toda a Europa.

Para alcançar os seus objectivos, os clubes (grande parte deles detidos por privados) procuravam atrair jogadores europeus, nomeadamente escoceses que eram cobiçados pelas melhores e mais endinheiradas equipas americanas. A par desta tendência para a importação de talentos, os melhores jogadores nacionais eram também alvo de forte disputa. Uma lógica que norteou a estratégia do Boston Wonder Workers (também conhecido por Boston Soccer Club), o maior clube do Estado de Massachusetts que, em 1924, deu entrada na ASL, procurando afirmar-se nos anos seguintes no mapa futebolístico americano. Entre as vedetas internacionais contratadas, uma fez um furor comparável à contratação de Pelé pelo New York Cosmos, em 1975, durante a segunda “era dourada” do soccer nos EUA (que duraria até 1984): o internacional escocês Alex McNabb que, pouco tempo depois, iria influenciar profundamente a carreira de Gonsalves.

Mas, a constelação de estrelas, que juntava grandes nomes da época como Bobby Blair, Werner Nilsen, Barney Battles, Johnny Ballantyne, Tommy Fleming e o já referido McNab como a cereja no topo do bolo, não iria trazer um sucesso desportivo imediato ao Boston. No final da temporada de 1926-27, a equipa surpreendeu ao ir buscar ao Lusitânia o ainda pouco conhecido Gonsalves, com apenas 19 anos. Uma contratação que não originou propriamente euforia entre os adeptos, que olhavam para Billy com cepticismo. O jovem luso-americano demoraria algum tempo a afirmar-se entre os nomes sonantes da equipa titular, mas na véspera do Natal de 1927 teve finalmente a sua oportunidade, frente ao Brooklyn. Demorou dois minutos em campo para calar os críticos, apontando um golo brilhante.

O Boston venceria o título nessa época, com Gonsalves em destaque, apontando seis golos em 20 partidas disputadas. Seria a primeira de muitas medalhas de campeão na principal competição que Billy iria amealhar. A possibilidade de jogar ao lado de jogadores com a qualidade de McNab iria contribuir decisivamente para a evolução do jovem, fortalecendo a sua visão de jogo e as suas características de jogador de equipa, que fazia brilhar os companheiros no ataque.

“Gonsalves foi um autêntico ‘playmaker’ [organizador de jogo] numa era em que as assistências para golo não faziam parte das estatísticas oficiais”, descreveu Holroyd, autor de um artigo intitulado “Billy Gonsalves: ‘The Babe Ruth of American Soccer’”. O “madeirense” permaneceria mais uma época ao serviço do Boston, regressando depois a Fall River, agora para representar o poderoso Fall River Marksman. Com ele seguiu também McNab.

Na sua nova equipa, Adelino veio encontrar Bert Patenaude, um outro talento local, com quem constituiu o que muitos historiadores do soccer designaram como a melhor dupla atacante de sempre no futebol americano. Logo na primeira temporada ao serviço do Marksmen, Gonsalves apontou 14 golos, contribuindo decisivamente para os 25 somados por Patenaude. Este sucesso da dupla foi o sucesso do clube de Fall River, que se consolidou como a melhor equipa da liga da costa atlântica.

Os Mundiais

As boas prestações dos dois jogadores garantiu-lhes lugares na selecção dos EUA que viajou para o Uruguai para disputar o primeiro Mundial da história, em 1930. A equipa americana seria mesmo a grande surpresa do torneio, alcançando as meias-finais, onde foi derrubada pela Argentina, mas acabou por garantir o terceiro lugar na prova, que constitui ainda a melhor classificação da sua história.

No Uruguai e na digressão pelo Brasil que se seguiu, Gonsalves chamou as atenções. A sua impressionante estatura, pouco habitual para os futebolistas da época, a par da sua habilidade com a bola trouxeram-lhe vastos elogios na imprensa. Após algumas partidas por terras brasileiras, o jogador foi convidado a assinar pelo Botafogo, uma das potências futebolísticas do país. Mas, com apenas 22 anos, as saudades de casa falaram mais alto e o jogador regressou a Fall River.

O soccer americano enfrentava grandes convulsões no início dos anos de 1930. A Grande Depressão provocava ondas de choque na América e no mundo, atingindo fatalmente muitos patrocinadores da modalidade e proprietários de equipas. A crise atingiu igualmente os adeptos, na sua maioria elementos das classes trabalhadoras. Inúmeras equipas foram extintas e outras, para sobreviver, tiveram de recorrer a medidas criativas. Fundiram-se clubes e outros mudaram de habitat. Foi o que aconteceu ao Fall River Marksmen. O seu proprietário, Sam Mark, juntou esforços com o New York Soccer Club, refundando-se ambos como New York Yankees (a versão futebolística do famoso clube de basebol onde brilhava Babe Ruth), transferindo-se para a “Big Apple” no início dos anos de 1930. A experiência não correu bem e o clube foi obrigado a nova transferência, agora para New Bedford. Gonsalves foi atrás.

Em 1934, o luso-americano foi convocado para o segundo Mundial da sua carreira, agora em Itália. Desta vez a equipa não teve uma prestação brilhante, acabando drasticamente afastada logo na primeira partida pelo conjunto transalpino, após uma derrota por 7-1, que haveria de se sagrar campeão. Mas Billy voltou, mesmo assim a destacar-se, recebendo convites de clubes locais para permanecer em Itália. Mais uma vez não aceitou.

Regressaria aos EUA indiferente à crise que o futebol atravessava por estas paragens. Encerrada a sua ligação com Sam Mark, o jogador iria prosseguir a carreira em ligas estaduais - que cresciam na proporção do desaparecimento dos campeonatos nacionais -, sempre a destacar-se com golos e assistências. Depois de uma longa experiência por equipas do Midwest, regressaria, com 33 anos, à costa leste nordestina, onde encerraria a carreira em 1947, com 39 anos. Pouco se sabe acerca da sua vida nos anos seguintes, a não ser que morreria a 17 de Julho de 1977, em Newark. Exactamente onde a selecção portuguesa aterrou esta segunda-feira.

“Para além de todo o seu talento e qualidade, Billy Gonsalves era também um cavalheiro: nunca foi advertido ou expulso de uma partida”, lembra Holroyd. Em 1950, o “madeirense” Adelino integrou a lista inaugural do National Soccer Hall of Fame, instituição que preserva os momentos e as figuras mais marcantes do futebol nos EUA. Em Fall River deu um nome a um campo de futebol, o Billy Gonsalves Field e em Rhode Island, a equipa local, os Rhode Island Reds, ainda promovem um torneio em sua memória, o Billy Gonsalves Memorial Cup.

“Pelé conseguia bater uma bola, mas isso não era nada comparativamente com o que Billy Gonsalves fazia. Billy conseguia bater uma bola e faze-la voar”, afirmou um dia Jack Hynes, um ex-internacional norte-americano, nascido na Escócia, e falecido no ano passado: “Ele era o maior.”

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