A rapariga que partiu o braço a um guarda-redes com um remate

Lily Parr foi uma pioneira na afirmação do futebol feminino e teve uma longa carreira de 30 anos.

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A equipa das Dick, Kerr Ladies, com Lily Parr, a primeira da fila de baixo a contar da direita DR

Vai levar muito tempo até que exista igualdade de género no futebol. Por exemplo, apesar de existirem registos de equipas femininas quase contemporâneas das primeiras equipas masculinas na segunda metade do século XIX, há uma diferença de 61 anos entre o primeiro Mundial de futebol masculino (1930) e o primeiro Mundial feminino (1991). O Mundial que se está a disputar no Canadá também é prova de desigualdade, com a utilização de campos de relva artificial, algo que nunca aconteceu na prova masculina. O futebol feminino não é uma história de igualdade adquirida, mas em processo de conquista. E nessa campanha, há um nome que se destaca, Lily Parr, a goleadora do remate potente.

Lilian Parr era uma rapariga alta (1,83m) e robusta que ignorava as actividades reservadas para o seu sexo e preferia jogar râguebi e futebol com os rapazes. No início do século XX, durante e após a I Guerra Mundial, o futebol feminino era um desporto muito popular que atraía multidões de 50 mil pessoas. Lily Parr começou a jogar aos 14 anos numa equipa da sua cidade, as St. Helen’s Ladies, e, um ano depois, em 1920, foi trabalhar para uma fábrica de munições em Preston que formara uma equipa de futebol entre as operárias para manter a moral em alta.

Lily era a “estrela” da Dick, Kerr Ladies, uma equipa que defrontava tanto equipas femininas como masculinas. Conta a lenda que era uma fumadora compulsiva, mas que o seu poder físico em campo superava o de muitos homens. O seu pé esquerdo, em particular, era muito temido. O livro “The Dick, Kerr Ladies” conta um episódio que ocorreu durante um jogo com uma equipa de homens. Lily, quando tinha apenas 16 anos, terá marcado um penálti com uma força tal que o impacto da bola provocou a fractura de um dos braços do guarda-redes adversário.

Já depois da guerra, Lily esteve naquele que é considerado o primeiro jogo internacional entre equipas femininas. As Dick, Kerr Ladies fizeram o papel de selecção inglesa frente a uma equipa de França que fez uma digressão por Inglaterra. Fizeram quatro jogos, com duas vitórias inglesas, uma francesa e um empate. Um ano depois, pela selecção inglesa oficial, Lily marcou todos os golos da sua equipa numa vitória por 5-1 frente à selecção francesa.

Depois de uma suspensão entre 1915 e 1918, os campeonatos profissionais masculinos foram retomados, mas o jogo feminino continuava a ser popular e as Dick, Kerr Ladies eram a melhor e mais solicitada equipa do território. As receitas dos seus jogos eram doadas a associações de veteranos de guerra, a hospitais e a mineiros, mas nem a popularidade, nem a dimensão beneficente dos jogos impediu que, a 5 de Dezembro de 1921, a Football Association (FA) decretasse uma proibição do futebol feminino. “O futebol não é adequado para as mulheres e não deve ser encorajado”, era a opinião da FA, que considerava que “uma inadequada parte das receitas de bilheteira era dedicada a obras de caridade”. Os campos em Inglaterra das equipas associadas à FA passavam a estar proibidos de receberem equipas de mulheres – formalmente, esta proibição só foi abolida em 1971.

As equipas femininas passaram a fazer mais digressões ao estrangeiro, mas deixaram de ter acesso aos campos com maior capacidade. Não durou muito até a Dick, Kerr desmantelar a sua equipa de futebol e despedir muitas das jogadoras, incluindo Lily Parr, que acabaria por ir trabalhar num hospital, onde iria conhecer a sua companheira, Mary – também nisto foi pioneira, ao assumir, sem reservas, a sua sexualidade – e continuou a jogar futebol noutra equipa, as Preston Ladies.

A carreira de Lily Parr ainda atravessou a II Guerra Mundial e só terminou em 1951, já Lily tinha 45 anos. Foram 30 anos a jogar futebol, durante os quais terá marcado mais de 1000 golos, muitas décadas antes de Pelé o ter feito. Depois de uma vida dedicada ao futebol, Lily acabaria por morrer aos 73 anos, vítima de cancro. “Tinha um coice que parecia uma mula. Quando marcava um canto, era com tanta força, parecia uma bala”, contava uma antiga colega de equipa. E não foi apenas pelos golos que ficou na história. Lily também terá sido a primeira mulher a ser expulsa de um jogo, por agressão.

Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos

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