“A formação no futebol chinês não existe”

Luiz Felipe Scolari, ex-seleccionador de Portugal, treina o actual campeão chinês e tem sido um observador privilegiado sobre o modo como o futebol naquele imenso país está a crescer.

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Luiz Felipe Scolari quer continuar a treinar pelo menos até aos 70 anos Miguel Manso

Em 35 anos de carreira, Luiz Felipe Scolari já passou por muitos sítios, entre o Centro Sportivo Alagoano, equipa do Nordeste brasileiro (em 1982), e o Guangzhou Evergrande (desde 2015), actual bicampeão chinês e detentor da Liga dos Campeões da Ásia. O futebol chinês poderá, ou não, ser a última paragem do treinador brasileiro de 68 anos, mas Portugal, onde esteve seis anos, é onde volta sempre – tem um filho a viver em Lisboa. Desta vez, à beira do início de mais uma liga chinesa, “Felipão” escolheu a Cidade do Futebol, que ainda não existia nos seus tempos de selecção portuguesa, para cumprir um estágio de pré-temporada do Guangzhou, que irá defender o título de campeão numa liga que é cada vez mais visível no mundo graças aos milhões que os clubes investem em “estrelas” do futebol internacional – os brasileiros Paulinho, Goulart, Alan Carvalho e o colombiano Jackson Martinez, que poderá estar de saída, são os estrangeiros do Guangzhou. Isso é apenas parte do plano da China para fazer do futebol uma prioridade nacional, diz Scolari ao PÚBLICO. Quando o futebol de formação estiver a funcionar, e começarem a aparecer os primeiros craques chineses, ninguém os vai parar.

Tendo em conta a ligação que tem a Portugal, não foi nada por acaso ter escolhido a Cidade do Futebol para fazer o estágio de pré-temporada...
Vim visitar a minha família e fui conhecer a Cidade do Futebol. Preenchem tudo o que precisamos para uma pré-temporada. Fomos muito bem recebidos pela FPF, os meus jogadores estão encantados com Portugal e com Lisboa.

Esta Cidade do Futebol não existia no seu tempo…
É um espectáculo para trabalhar e tem tudo para funcionar bem – e funciona. Mas os sítios por onde nós andámos, Óbidos, Évora, Alcochete, no Norte, foram locais que nos deram todas as condições também.

Também há a questão afectiva a pesar, o tempo que passou por cá e ter cá o seu filho e o neto...
Claro, pelo carinho e o amor que tenho pelo país, por tudo o que eu vivi aqui, pela minha família.

Já passou pela taça de campeão da Europa na Cidade do Futebol?
Já pois. Até tirei fotos com ela. Não ganhámos em 2004, ganhámos em 2016. Leva 12 anos de atraso.

Como é que chegou ao futebol chinês?
Já tinha tudo pré-acertado em 2011. Mas, por questões familiares, não aconteceu. Em 2015, voltei a ser sondado e aceitei. Fiquei muito feliz com esta ida para o Guangzhou porque está a ser melhor do que eu esperava. O Guangzhou tem uma equipa muito boa, a direcção trabalha muito bem. Tenho um bom centro de treino e excelentes jogadores chineses, praticamente a base da selecção chinesa. São jogadores muito inteligentes que trabalham com uma alegria muito grande.

Tem bons jogadores chineses, mas não passam sem os estrangeiros…
Tenho estrangeiros que fazem a diferença. Os que tenho na equipa marcam a diferença, não só pela técnica, como pela dedicação, amizade e pelo ambiente que fazem com o grupo chinês. Tenho muitos compatriotas meus, o Paulinho, o Goulart, o Alan, tenho o Jackson Martinez [colombiano], tenho o Paulo Turra, que jogava no Boavista, no meu staff, o Murtosa, o Darlan… Temos um grupo bom.

Que lhe parece esta política de gastar tanto dinheiro em contratações em salários? Isto não é começar pelo topo da pirâmide?
Acho que eles já estão a ficar com os pés mais no chão para a próxima etapa. Estão a implementar leis sobre quantos [estrangeiros] podem jogar e, no futuro, com todo este envolvimento que o futebol chinês está a ter, a visibilidade, e se se implementarem as coisas que estão a ser feitas, o trabalho poderá ser feito.

Falta a formação…
A formação no futebol chinês não existe. Não temos nenhum campeonato a ser jogado em sub-15, sub-16, sub-17, sub-19… quando esse campeonatos começarem a ser disputados, com pontos, as coisas vão evoluir.

O futebol é uma prioridade do governo chinês. E sente que também já é uma prioridade para as pessoas?
Os chineses gostam muito de futebol. A minha equipa joga num estádio que dá para 50 mil pessoas e tem médias de 40 mil pessoas a ver. É uma torcida muito vibrante e empolgada, e em todos os sítios onde vamos jogar há sempre estádios lotados. As pessoas gostam e o governo está a implementar o futebol nas escolas, com a criação de novos campos. O governo está a ajudar bastante.

Com o objectivo final de colocar a China no topo do futebol mundial…
Penso que o primeiro objectivo é colocar a China como uma potência do futebol asiático. Neste momento, o Japão e a Coreia já foram a mais campeonatos mundiais que a China. Mas a intenção é fazer com que a China se iguale a esses rivais na Ásia.

Quanto tempo?
Penso que daqui a dez ou 20 anos. Os jogadores que comecem agora nesses campeonatos de formação só vão estar prontos daqui a quatro ou cinco anos. É um projecto que tem de ser fomentado pelo governo e tem de ser aceite pelos clubes para que funcione.

Contratar estrelas também ajuda…
Neste momento, o campeonato chinês tem visibilidade mundial. Daqui a pouco vão começar a surgir as promessas chinesas, se essas medidas forem bem implementadas. E aí, ninguém segura a China não! 1,4 mil milhões de habitantes? Uma base de recrutamento maior do que qualquer outro país do mundo.

Este ano tem a companhia de dois treinadores portugueses…
Isso. Temos o Jaime Pacheco e o André Villas-Boas. Não dá para falarmos muito. São cidades muito longe umas das outras. Ainda me encontrei com o Jaime antes de ele assinar, e conversámos uma manhã toda. Falamos quando nos encontrarmos. É que a China é grande! É a mesma coisa que o Brasil. Tem equipas do Norte que, entre Janeiro e Abril, não jogam nos seus campos. Jogam os primeiros quatro ou cinco jogos fora de casa. É muito frio. Vamos jogar a lugares em que é preciso estar quatro horas dentro de um avião e, depois, mais duas horas de ônibus.

Imagino que, com a sua experiência, já não se deixe surpreender por muita coisa. Mas houve alguma coisa que o tenha surpreendido na China?
Temos uma imagem da China de que é tudo diferente. Mas é um país muito globalizado. A minha cidade tem três milhões de habitantes, fácil de viver, tranquila, segura, limpa. Surpreende porque a gente não imagina o quanto ela tem de potencial. Gosto muito de viver lá e pretendo ficar por lá, pelo menos até ao fim do ano.

Há quem tenha a opinião de que ir para o futebol chinês é equivalente a acabar a carreira. Qual é a sua opinião sobre isto?
Vejo pela minha equipa. O Paulinho saiu do Tottenham, onde já não era convocado para a selecção, veio para a China, voltou a ser convocado e está a ser um dos pilares da selecção do Tite. O Renato Augusto saiu do Brasil para a China e foi convocado, outros como o Alex Teixeira, o Ramires… O Lavezzi é da selecção argentina e joga na China. Isto para não falar de jogadores europeus. Eslovacos, croatas…

Ao sair do Chelsea para a China, o Óscar não corre o risco de ser esquecido?
Não, não. Corre é o risco de ser lembrado!

Disse em tempos que não queria treinar até aos 70 anos, o Felipão tem 68…
Quem disse isso?

Foi você, há uns anos.
O que eu disse foi que até aos 70 eu vou treinar. Tenho 68 e ainda posso estar mais dois. Depois, pode me cobrar.

A China é a última paragem?
Pode ser que sim, ainda não sei. Se olhares hoje a vida de qualquer pessoa com 60 anos ela não está no meio, mas está com um nível maravilhoso. Antes, uma pessoa com 60 anos era um velho, hoje é um jovem experiente. Eu não tenho um dia, um ano exacto para parar. Se me sentir bem, se sentir que tenho condições para trabalhar, de comandar, de dar alguma coisa a essa equipa, tudo bem.

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