A festa é bonita de ver!

A Copa do Brasil tem sido a festa da nova classe média brasileira, da sua ascensão social, que recusa a politização do futebol pelo governo ou pela oposição.

Raymond Aron, o célebre politólogo francês, escreveu que se o futebol desperta tanta paixão, é por ser um jogo onde o golo é, regra geral, muito difícil e o resultado é sempre imprevisível – as melhores equipas podem perder. Ainda não há muitos anos uma equipa amadora chegou à final da taça de França, derrotando pelo caminho equipas profissionais da primeira divisão; não há nenhuma competição de futebol com eliminatórias onde isso não possa acontecer.

Raymond Aron falava do futebol como desporto e divertimento de massas. O futebol é isso mesmo e por isso a derrota imprevisível, excecional, do Brasil com a Alemanha, por 7 a 1, não é rigorosamente mais nada! Não é, como tenho lido, uma humilhação da nação brasileira nem qualquer prova da superioridade da racionalidade e organização alemã contra a improvisação e espontaneidade do Brasil.

A Copa, esta como qualquer outra, voltou a mostrar que o futebol é uma manifestação aceitável, regra geral inofensiva, de patriotismo. Para alguns,contudo, a ocasião da expressão de manifestações de nacionalismo serôdio, confundindo-se uma seleção de futebolistas profissionais com a nação e o seu destino, com a grandeza de um povo, mesmo com o seu desenvolvimento e a organização do seu estado. Nada mais falso, como aliás o atesta a história futebolística brasileira. O Brasil de hoje é um país bem mais justo, competente, desenvolvido, democrático, do que o era ao tempo da última vitória na copa de Pelé, em 1970, quando era um dos países mais injustos e desiguais do mundo e uma ditadura brutal.

Não há nenhum confronto entre dois exércitos nacionais e por isso não foi o Waterloo do Brasil nem aumentou a influência alemã em terras de Vera Cruz. Muito menos foi uma derrota do governo de Dilma contra o de Merkel, ou uma vitória da oposição no Brasil, como uma vitória na copa não teria sido um triunfo do governo.

 A derrota de Portugal contra a mesma seleção alemã, não foi, como alguns escreveram, mais uma humilhação nacional a juntar à humilhação da austeridade, essa sim sentida por muitos. A eventual vitória da seleção portuguesa não teria alterado em nada a política europeia e a influência que nela tem o governo Merkel. É do domínio do nacionalismo mais mesquinho o regozijo de alguns em Portugal com a derrota da seleção brasileira por uma margem superior à portuguesa, como que tornando a dita “humilhação nacional” menos dolorosa; quem sabe o governo português já poderia, de cabeça levantada, negociar com Berlim e Bruxelas, quem sabe o fim da austeridade e a restruturação da dívida! É reação complexada de quem não aceita a evidência que muitos portugueses contribuíram para criar um país gigante cuja influência mundial não para de crescer, o que é uma enorme oportunidade para Portugal. Os brasileiros têm uma relação especial com os portugueses, como o demonstra a hospitalidade exemplar com que são recebidos no Brasil, como aconteceu com a seleção portuguesa.

Há muito que os políticos procuram tirar proveito dos resultados desportivos. Basta recordar Hitler nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, e ainda hoje vibramos ao ver Jesse Owens, o negro americano, vencer o herói alemão, como mostra Leni Riefenstahl, no seu filme Olympia “Ídolos do Estádio “ que era suposto ser um hino ao triunfo da Alemanha Nazi. Regra geral, vira-se o feitiço contra o feiticeiro.

Muito mais elucidativa é a capacidade de organização de um campeonato do mundo de futebol – garantir as estruturas necessárias, acolher milhões de visitantes e milhares de jornalistas, garantir a segurança e a qualidade da festa que acompanha um tal acontecimento mundial.

O Brasil é um laboratório vivo do mundo do futuro. O futuro, aliás, já está aqui. Esta foi a copa do Brasil potência que emergiu num mundo policêntrico, pós-ocidental, um país que tem influência nos destinos do Mundo, como o demonstra a reunião dos Chefes de Estado do Brasil, da Rússia, da India, da China e da África do Sul (BRICS), que decorrerá a 16 de julho, em Fortaleza. No período entre 2008 e 2018, 6 dos 7 maiores acontecimentos desportivos mundiais -campeonatos do Mundo de futebol e olimpíadas- foram ou serão nos países dos BRICS.

A copa de um Brasil que tirou 40 milhões de pessoas da pobreza desde 2003 e 60 milhões desde 1993, segundo o especialista Mercelo Neri no seu estudo “A nova Classe Média- O lado Brilhante da base da pirâmide”. Esta ascensão social criou uma nova classe média exigente, que quer uma democracia mais participativa. Esta foi a copa desta nova classe média, que fez dela a sua festa. E que festa extraordinária neste país baleia, sexta economia do mundo (e as previsões apontam para que ocupe a quarta posição em 2030), 15 vezes maior que a França, e que de Norte a Sul tem a distância de Lisboa a Moscovo.

Enganaram-se os que previam que o real descontentamento político e a exigência de transparência nos gastos públicos com a copa dariam origem a manifestações anti-copa e que antecipavam um desastre organizativo e de segurança. Enganaram-se os que não perceberam que esta era a ocasião, soberana, para a nova classe média brasileira dizer ao mundo que existia e que esta era a sua festa. Não perceberam que o desconforto que sentem com as multidões que enchem os aeroportos, as universidades, os centros comerciais ou os estádios de futebol não são partilhados pela nova classe média que, bem pelo contrário, está a desfrutar do seu lugar ao sol, duramente conquistado. Mesmo depois do desaire, aqui a festa vai continuar – como escreveram no Facebook os brasileiros com quem vi a derrota da seleção, “ valeu cada minuto, nos divertimos muito“

Terminada a festa, eis que começa a campanha para a eleição presidencial de 5 de outubro. Aí a nova classe média vai querer saber quem lhe garante o progresso social, quem responde às suas legitimas inquietações sobre o futuro, quem garante uma governação mais transparente e participativa. Essa é outra história, que pouco ou nada tema ver com o futebol.

 Investigador visitante do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo

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