A desconfiança que mina o futebol africano

A participação das selecções africanas ficou ensombrada pelas polémicas fora do terreno de jogo. A qualidade existe, mas continua a faltar trabalho de bastidores.

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Proença esteve no Camarões-Croácia Emmanuel Dunand / AFP

Foi curta a primeira viagem de uma equipa africana para disputar um Mundial de futebol. Tanto em distância como em permanência. A 27 de Maio de 1934, a selecção egípcia entrava em campo para defrontar, em Nápoles, a congénere húngara. O Egipto era ainda um protectorado britânico e o técnico era James McCrae, um escocês que tinha conhecido o sucesso ao serviço dos Grenadier Guards, um regimento do exército britânico que chegou a ter uma equipa de futebol. Eram de facto outros tempos, excepto no desfecho. Apesar da luta dada pelos egípcios, a Hungria venceu por 4-2 e terminou com a participação africana.

Só em 1970 é que o Mundial voltou a receber selecções africanas, no caso Marrocos. E seriam precisas mais duas décadas para haver um assomo do sucesso no palco Mundial. Surgiu pelos pés do inesquecível Roger Milla, que comandou os Camarões até uma inédita presença nos quartos-de-final, em 1990, sendo os "leões indomáveis" apenas afastados pela Inglaterra.

Desde então, a participação das selecções africanas suscitou todo o tipo de esperanças de que o título mundial fugisse à bipolaridade América do Sul/Europa. Mas a campanha africana no Mundial 2014 – que terminou na segunda-feira nos oitavos-de-final – veio recordar o longo caminho a percorrer para que o potencial do continente se cumpra.

Com a notável excepção da Argélia, todos os representantes africanos foram notícia por questões polémicas, desde boicotes aos treinos até escaramuças entre colegas em pleno campo. Esta terça-feira a Federação Camaronesa de Futebol revelou que vai investigar a alegada participação de sete jogadores num esquema de resultados combinados, durante a partida frente à Croácia, que a selecção africana perdeu por 4-0.

Já antes do início do Mundial, a selecção camaronesa tinha ameaçado não embarcar para o Brasil, caso a federação não concordasse com o valor dos prémios de jogo pedido pelos jogadores.

“Porque vamos para casa cedo?”, questionava o treinador nigeriano, Stephen Keshi, logo após a derrota com a França nos oitavos-de-final, para logo dar uma resposta: “Talvez haja alguns jogadores sem a concentração total no jogo e, provavelmente, há muitas coisas que se estão a passar.” No dia seguinte, Keshi comunicou a sua demissão. Dias antes do jogo, os jogadores nigerianos exigiram um prémio extra pela qualificação para os “oitavos”, o que levou mesmo ao cancelamento de um dos treinos.

Para Paulo Duarte, que orientou o Burkina-Faso e o Gabão, estes episódios têm origem na “falta de confiança” que os jogadores sentem em relação aos responsáveis. “Por vezes há má vontade dos dirigentes e chega a um ponto em que [os jogadores] já não acreditam nas promessas”, conta ao PÚBLICO.

Mas o técnico considera ser errado “isolar” o caso africano, dando o exemplo dos episódios que envolveram a França no último Europeu e até o caso “Saltillo” da selecção portuguesa no México, em 1986. “Há um mito sobre a desorganização [africana] que ainda paira”, observa Paulo Duarte, que prefere falar num “continente com potencial” e que “tem vindo a evoluir”.

Ainda assim, o treinador reconhece que, “em África, há pessoas que apenas na desorganização é que conseguem atingir os seus intentos”. Paulo Duarte diz mesmo conhecer casos “de jogadores que pagam bilhetes para irem jogar porque as federações prometem e não pagam”.

Numa carta publicada na BBC, o realizador e jornalista zimbabweano Farai Sevenzo faz um balanço da participação das selecções africanas e concluiu que “é tempo de tratar o talento africano como tal e pagar-lhes aquilo que valem”. E deixa uma recomendação: “A administração futebolística não deve ser um emprego para a vida como acontece em tantas federações.”

Luís Norton de Matos, que treinou a Guiné-Bissau e o clube senegalês Étoile Lusitana, refere a falta de cultura organizativa como a causa para o comportamento errante das equipas africanas. “Em dois anos no Senegal, conheci quatro ministros dos Desportos e apresentei um plano olímpico para quatro anos. Falar em quatro anos é como falar no fim da vida”, observa.

“Num jogo, [as selecções africanas] podem bater qualquer equipa, mas numa prova que exija regularidade estão ainda muito longe”, defende Norton de Matos.

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