A bola começa a rolar num país dividido entre as críticas à organização e a paixão pelo futebol

Brasil e Croácia abrem a Copa em São Paulo numa semana caótica na cidade e onde persistem muitas dúvidas sobre a capacidade organizativa do país para receber o torneio planetário. A prova irá jogar-se dentro e fora dos relvados.

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Trabalhadores instalam uma bola gigante em Cuiabá Eric Gaillard/Reuters

Se receber um Mundial é uma oportunidade única para a promoção da imagem de uma nação ou para a sua projecção e consagração no cenário internacional, o Brasil ruma definitivamente contra a maré. Após meses de nervosismo e incerteza, os responsáveis políticos do “país do futebol” e a cúpula dirigente da FIFA estarão hoje a fazer figas para que tudo corra bem (ou menos mal) na abertura do 20.º Mundial da história.

Com as atenções do planeta centradas no bairro de Itaquera, em São Paulo, onde nasceu um dos mais modernos e megalómanos estádios do globo, com custos mais do que proporcionais, Brasil e Croácia abrem a competição no Arena Corinthians, o denominado Itaqueirão (17h, em São Paulo; 21h, em Portugal). Será o pontapé de saída para uma maratona de 32 dias, envolvendo 736 jogadores, divididos por 32 selecções, que culminará na final de 13 de Julho, no renovado Maracanã, no Rio de Janeiro. A bola vai rolar, dentro e fora dos relvados, e o Brasil propõe-se ganhar estes dois campeonatos paralelos. Mas nunca a organização um torneio como este dividiu tanto um país, face ao indisfarçável sentimento de insatisfação com a organização do evento, que ameaça superar a paixão nacional pelo futebol.

Foram caóticos os dias que antecederam o início do Mundial em São Paulo. Uma greve musculada dos trabalhadores do metro paralisou a cidade, tornando infernal ou impossível a mobilidade de mais de 4,5 milhões de paulistanos que pretenderam chegar ou sair dos seus locais de trabalho. Entre confrontos com a polícia e intermináveis braços-de-ferro negociais a paralisação foi provisoriamente suspensa na última segunda-feira, ao final de cinco dias, após ter sido considerada “abusiva”, na véspera, pelo Tribunal Regional do Trabalho e levado ao anúncio da demissão de 42 funcionários da empresa, por justa causa.

Ao final da tarde desta quarta-feira (noite em Portugal), decorria uma assembleia convocada pelo sindicato dos metroviários para decidir se irão manter a greve convocada para hoje. “Fazer uma greve no dia da Copa é ruim. Não é o que queremos, a não ser que sejamos empurrados para isso”, avisou o presidente do sindicato, Altino Prazeres Júnior, que pretende que seja revista a decisão de demissão dos 42 trabalhadores, que são acusados de actos de vandalismo. Para já, Governo estadual de São Paulo recusou ceder às reivindicações dos trabalhadores para evitar precedentes que motivassem acções idênticas de outros sectores da sociedade. E as ameaças são mais que muitas.

Já o Executivo federal, liderado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), tem optado nos últimos dias pela via negocial e de apaziguamento dos descontentes. O principal dos quais, o Movimento dos Trabalhadores Sem Tecto (MTST), que era aquele que mais preocupava nesta altura as autoridades de Brasília pela sua capacidade de mobilização. O Palácio do Planalto e a Prefeitura de São Paulo levaram bem a sério as ameaças veladas do movimento que anunciou um “Junho vermelho”, com protestos que prometiam afectar o Mundial, apresentando, na última segunda-feira, um conjunto de medidas em resposta às reivindicações dos “Sem Tecto”. Cedências que envolveram, entre outros aspectos, a construção de duas mil unidades habitacionais nos terrenos invadidos pelo MTST, a 3,5 quilómetros do Itaqueirão, numa acção denominada “Copa do Povo”. Em troca, receberam promessas de tréguas.

Mas existem outros focos de apreensão face a ameaças mais à margem da sociedade. Os “black blocs” (grupo anarquista, que se opõe ao capitalismo e à globalização e que protagonizou as acções mais violentas em Junho do ano passado, durante a Taça das Confederações) já prometeram transformar o Mundial “num caos” e, para tal, esperam unir esforços com o Primeiro Comando da Capital (PCC: a maior organização criminosa no Brasil, que actua principalmente em São Paulo).

 “O caos que o Estado tem colocado na periferia, por meio da violência policial, na saúde pública, com pessoas morrendo nos hospitais, na falta de educação, na falta de dignidade no transporte, na vida humana, é o caos que a gente pretende devolver de troco para o Estado”, anunciou um elemento do grupo radical, de 34 anos, em declarações exclusivas ao jornal Estado de São Paulo, no passado dia 1 de Junho. As forças policiais estão a levar muito a sério esta intimidação. Para fazer face a todas as eventualidades, o Ministério Público já anunciou a instalação de um gabinete de crise para agir em casos de excessos nas manifestações.

Com mais ou menos protesto e independentemente do seu grau de violência, parece certo que, pela primeira vez, um evento com a projecção mediática de um Mundial não trará dividendos à classe governante que o organiza. A presidente Dilma Rousseff tem vivido um autêntico pesadelo desde Junho do ano passado, quando, durante a Taça das Confederações (uma espécie de ensaio geral do Mundial), uma gigantesca onda de contestação eclodiu nas principais cidades do país, de forma tão inesperada como espontânea, em protesto contra os custos económicos e sociais da organização da prova.

Manifestações mobilizadas através das redes sociais, apartidárias e sem rostos visíveis à cabeça, pelo menos até serem infiltradas pelos “black blocs” e enveredarem por uma via mais violenta e destruidora. O Governo central constatava, em choque, que a organização do Mundial não era uma epopeia unânime de orgulho nacional e que milhões de brasileiros tinham outras prioridades e urgências para a aplicação dos dinheiros públicos. À cabeça a educação, saúde, saneamento, transportes e a reforma do sistema político, considerado corrupto e alheado das necessidades do cidadão comum.

Após o torneio, que a selecção brasileira acabou por vencer, e ao longo do último ano os manifestantes voltaram às ruas, mas novos actos de vandalismo e violência paralelos acabaram por levar à sua desmobilização progressiva, pelo menos com a força inicial. A bola de neve reivindicativa é que não parou de engrossar e estendeu-se a grande parte dos sectores da sociedade. À medida que se avizinhava o início do Mundial, as greves violentas tornaram-se uma realidade cada vez mais frequente, procurando aproveitar a proximidade da competição e a consequente visibilidade internacional para verem atendidas as suas exigências.

Em ano eleitoral, o descontentamento geral tem-se reflectido nas sondagens, cada vez mais impiedosas para o Governo, a braços também com as consequências do desaceleramento económico. Em poucos meses, a confortável vantagem de Dilma nos estudos de opinião começou a esfumar-se, tornando praticamente inevitável uma segunda volta para uma eventual reeleição nas presidenciais do próximo mês de Outubro.

No Estado de São Paulo, com os seus 31,8 milhões de eleitores, onde a contestação ao executivo de Brasília é particularmente elevada, um estudo da Datafolha (instituto de pesquisa do jornal Folha de São Paulo), revelado na última terça-feira, indicava que Dilma Rousseff perderia mesmo um segundo turno eleitoral no confronto com cada um dos seus dois principais adversários, Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB). A rejeição da actual presidente atinge os 46% e a maioria dos inquiridos paulistas, 54%, garantiu sentir mais vergonha do que orgulho pela organização da prova.

As ameaças ao sucesso
Para este clima de constrangimento, contribui o cepticismo que persiste em relação à preparação do país para organizar, com dignidade, um evento desta magnitude e ao eventuais reflexos negativos que poderão resultar a nível internacional. E não apenas pelos atrasos na construção de muitos dos estádios e aeroportos,  inúmeros problemas nos acabamentos das obras, inflacionamento dos custos inicialmente previstos e a racionalidade, mais do que duvidosa, de muitos recintos no pós-Mundial, que ameaçam tornar-se em gigantescos “elefantes brancos”. Os brasileiros estão também preocupados com as questões da mobilidade urbana durante a prova, os acessos aos locais dos jogos, as ameaças de greves em serviços essenciais (nomeadamente ligados à segurança), as manifestações contra a realização do torneio e todos os restantes problemas operacionais que possam surgir no entretanto.

Entre estes últimos destacam-se as dificuldades na montagem das estruturas de telecomunicações nos estádios, nomeadamente nos recintos em que as obras sofreram atrasos mais escandalosos, como o Itaqueirão, Arena da Baixada (Curitiba) e Arena das Dunas (Natal). No último dia 27 de Maio, o Governo federal admitiu que o serviço de Internet e telemóvel “vai ficar lento” para os adeptos que se desloquem a seis dos 12 estádios que irão receber o Mundial, que não contarão igualmente com rede wifi, por não ter havido acordo com os operadores para a sua instalação.

Problema que se poderá estender também às tribunas de imprensa que vão acolher jornalistas de todo o mundo para cobrir a competição e que têm deixado a FIFA à beira de um ataque de nervos. Uma possibilidade que levou já Jérôme Valcke, secretário-geral do organismo máximo do futebol, a avisar que, na hipótese de se confirmar o pior cenário, a Copa do Brasil correrá o risco de ser qualificada para a posterioridade como “a pior de todos os tempos”.

“Escrete” pressionado como nunca
Será numa panela de pressão política, social e com muitas incertezas em relação à organização do torneio que a selecção brasileira irá entrar em campo, esta quinta-feira, para iniciar o que pretende ser uma caminhada vitoriosa para a conquista do tão almejado hexacampeonato. Talvez mais pressionada do que aquela que disputou a prova em 1950, no primeiro Mundial organizado no país, que acabou inesperadamente com a derrota da equipa da casa, na final, perante o Uruguai (2-1), deixando um perene trauma na nação. Competir neste contexto de agitação não seria o cenário idealizado por Luiz Felipe Scolari para garantir a tranquilidade dos seus jogadores, que não têm passado imunes aos protestos. Chegaram mesmo a ser cercados e vaiados por alguns manifestantes quando deixavam, de autocarro, uma unidade hoteleira do Rio de Janeiro rumo ao estágio de preparação para o Mundial.

Mais do que ninguém no país, o Governo deseja sofregamente o êxito da canarinha. Se a fase de grupos, que o Brasil terá de disputar com o México e os Camarões, para além da Croácia, parece não ser uma tarefa complicada para os campeões da Taça das Confederações, já o cruzamento dos oitavos-de-final deixa o Palácio do Planalto mais apreensivo, conforme foi revelado pela Folha de São Paulo, já em Janeiro deste ano. A inevitabilidade da selecção de Scolari defrontar Espanha, Holanda ou mesmo o Chile (partindo do princípio que a Austrália será o parente pobre do grupo B, que irá cruzar com os brasileiros se estes alcançarem, como é expectável, a fase de eliminatórias) constitui um risco para a continuidade da equipa da casa na prova e numa fase ainda bastante precoce.

O receio é que uma derrota e a consequente saída de cena da canarinha desanime ainda mais a população, contribuindo para estimular mais e maiores protestos contra os elevados custos do Mundial e as promessas não cumpridas de melhoramentos das infra-estruturas. Em sentido inverso, uma conquista de um inédito sexto troféu é encarada como potenciadora de uma onda de euforia no país, que abrandará muita da pressão que recai neste momento sobre a presidência. Os brasileiros, porém, têm vindo a demonstrar nos últimos tempos que sabem separar as águas. O árbitro vai apitar para o início do jogo e o resultado pode ser sempre imprevisível.

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