A angústia do brasileiro no momento do penálti

Thiago Silva espelhou a pressão “canarinha” no final da partida com o Chile. Foi acusado de derrotismo e fragilidade emocional, mas a história do jogador é uma longa luta contra adversidades. A maior começou no FC Porto há dez anos e quase acabou com a sua carreira.

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Thiago Silva angustiado antes da marcação dos penáltis no jogo com o Chile VANDERLEI ALMEIDA/AFP

A tensão emocional apoderou-se dos jogadores brasileiros nos momentos que antecederam a marcação dos penáltis que decidiriam o acesso aos quartos-de-final do Mundial, no último sábado. Em cima do final do prolongamento, o Chile enviara uma bola à barra ampliando o nervosismo. Um jogador em particular chamou a atenção ao afastar-se dos companheiros, sentando-se em cima de uma bola junto à linha lateral. Chorou e apelou aos céus com os braços levantados. Era o capitão Thiago Silva que procurava exorcizar a pressão. Não queria participar nos penáltis por se sentir inseguro. Os media brasileiros criticaram-no nos dias seguintes, qualificando a sua reacção de derrotista e paradigmática da fragilidade psicológica da equipa. O defesa central, um dos melhores do mundo, que foi dispensado pelo FC Porto há 10 anos, pediu compreensão.

“As pessoas julgam sem saber o que está acontecendo! Para quem falou que eu estava derrotado nesta foto aí sentado na bola estava muito enganado, sou brasileiro e não desisto nunca. Só queria um momento para fazer a minha oração! Ok”, escreveria o jogador, de 29 anos, na rede social Instagram, onde publicou a foto do seu momento de introspecção. No final da partida, que o Brasil acabou por vencer, confessou ter pedido a Luiz Felipe Scolari para ser o último da lista a rematar da marca dos 11 metros. “Bater penálti é uma grande responsabilidade em casa [Brasil] e pedi a Deus para não chegar a minha cobrança. Errei dois dos três últimos e o Felipão me perguntou: ‘Você pode ser o sexto [jogador a marcar]?’ Eu disse que não. Pedi para ficar como último, atrás até do Júlio César [guarda-redes]. Não estava confiante”, justificou-se ainda no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte.

Este foi mais um episódio dramático na carreira de Thiago Silva que, antes de atingir o topo, atravessou períodos de purgatório. O maior deles começou em Portugal, em 2004. Mas já lá vamos. Nascido no Rio de Janeiro, começou a praticar futebol num dos núcleos do Fluminense, um dos maiores clubes da cidade, mas não teve grandes oportunidades nas camadas jovens. Fez testes no Flamengo, onde foi reprovado, acabando por rumar ao Barcelona do Rio de Janeiro. Aqui chamou, finalmente, a atenção e acabou por ser convidado para uma experiência no estado do Rio Grande do Sul, ao serviço do RS Futebol. Na altura, alinhava como médio defensivo e as suas boas exibições levaram-no a ser convocado às divisões de base da selecção “canarinha”.

Já como profissional, transferiu-se para o Juventude, também do Rio Grande do Sul, brilhando no campeonato brasileiro de 2004, já como defesa central. Surgiu então na vida de Thiago Silva o empresário português Jorge Mendes, que convenceu os responsáveis do FC Porto a contratar o jogador, então com 19 anos. Esta primeira experiência na Europa não poderia ter sido mais traumatizante. Firmou um contrato de cinco anos com os “dragões”, mas acabou relegado para a equipa B. “A minha chegada ao Porto não foi fácil e tive algumas dificuldades. Falava a mesma língua, mas sentia-me muito só. Dois meses depois apanhei tuberculose e nenhum médico sabia ao certo o que se passava comigo”, recordaria mais tarde.

Apesar de doente, foi transferido para o Dínamo de Moscovo, onde o seu estado de saúde iria piorar. Pouco depois da chegada à Rússia foi-lhe confirmada uma tuberculose e acabou internado num hospital local por cinco longos meses. “As condições eram precárias. Ficava num quartinho minúsculo, com um banheiro muito pequeno e uma geladeira. A minha cama ficava num cantinho e se eu sentasse nela poderia levar a minha mão na pia directamente, de tão pequeno que era. O meu companheiro, naquele momento, foi o computador e o videogame. O vaso sanitário era no chão, na verdade não tinha vaso. Naquele mesmo buraco que tinha no chão, descia a água do chuveiro quando eu tomava banho. Eu tinha de fazer todas as minhas necessidades ali”, descreveu, em Junho do ano passado, durante uma entrevista à TV Globo: “Quando olho para trás, vejo o quanto sofri para estar aqui hoje. Não foi fácil para mim.”

Ponderou seriamente abandonar a carreira, mas acabou por recuperar e regressou ao Rio de Janeiro, em 2006. Aqui integrou os quadros do Fluminense, onde tudo tinha começado anos antes. Iria recuperar o tempo perdido e iniciar uma ascensão meteórica. “Quando treinei o Thiago Silva no Fluminense ele estava já totalmente recuperado da tuberculose. Tem uma personalidade forte e sempre foi um garoto de família e um atleta”, contou ao PÚBLICO António Lopes dos Santos, técnico que relançou a sua carreira no clube carioca: “Ele foi muito cedo para a Europa e acabou praticamente por reiniciar o seu trajecto no futebol no Fluminense. Percebia-se que estava nascendo ali um grande jogador, tal como o Marcelo [defesa esquerdo do Real Madrid e companheiro de Thiago Silva na selecção brasileira] que também despontava nessa altura na equipa [que incluía ainda Cláudio Pitbull, ex-jogador do FC Porto que representou na última temporada o Gil Vicente].”

O defesa alcançou rapidamente a titularidade na equipa carioca, vencendo, em 2007, a Copa do Brasil. “O Thiago era muito tranquilo, treinava bastante e tinha a qualidade que todo o mundo sabe. Era inteligente a jogar, com velocidade e uma técnica muito boa, saindo bem com a bola nos pés. Sabia o que queria e já tinha a ambição de vencer como jogador. Percebemos que iria dar resultado”, garantiu António Lopes. E deu. No final de 2008, seria contratado pelos gigantes italianos do AC Milan, a troco de 10 milhões de euros. E era só o princípio. Teve de esperar sete meses para se estrear pela equipa transalpina em jogos oficiais, face ao excesso de jogadores extracomunitários, mas acabou por afirmar-se no “onze” titular. A sua presença em campo conquistou imediatamente os adeptos rossoneros. Com os milanistas, conquistou o título na temporada 2009-10, com exibições que convenceram Dunga, então seleccionador brasileiro, a convocá-lo para disputar o Mundial da África do Sul.

Em Julho de 2012, as dificuldades financeiras do AC Milan abriram as portas à saída de Thiago Silva para o Paris Saint-Germain (PSG), num transferência milionária, estimada em 46 milhões de euros (a mais alta de sempre para um defesa central, até à altura), com o jogador a acordar um salário anual na ordem dos sete milhões de euros. Na capital francesa já conquistou quatro títulos (dois campeonatos, uma Taça de França e uma Taça da Liga). A titularidade na “canarinha” chegou ainda em 2010, com Mano Menezes ao comando da selecção, altura em que iniciou uma dupla de sucesso no eixo da defesa com o ex-benfiquista David Luiz, que será também seu companheiro de equipa no PSG a partir da próxima temporada.

Em 2012 seria nomeado capitão da selecção brasileira, um posto que manteve com a chegada de Luiz Felipe Scolari ao “escrete”. “Já no Fluminense o Thiago era um líder. Destacava-se pelas suas palestras à equipa, passando mensagens positivas para todo o grupo. Não fiquei surpreendido quando chegou a capitão da selecção. Sabia que ele iria longe”, referiu o seu antigo técnico no clube carioca. E, um ano depois de ter erguido a Taça das Confederações no estádio do Maracanã, Thiago Silva carrega o peso de um país que não aceita menos que um sexto título Mundial na bandeja.

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