Vieira prestou um bom serviço ao Benfica, mas ainda ficaram coisas por explicar

Foto
NUNO FERREIRA SANTOS

Luís Filipe Vieira pode ter aproveitado a sua última intervenção pública para puxar, mesmo que ao de leve, as orelhas a Jorge Jesus, mas também soube utilizar o tempo de antena na Benfica TV para uma rara demonstração de serenidade, bom senso e, até, autocrítica, o que, por si só, já é notícia. Acabou assim por prestar um bom serviço ao clube e até à tão má afamada classe dos dirigentes portugueses. Por uma vez, Vieira contrariou a opinião de um cronista brasileiro, segundo o qual "o dirigente é aquele indivíduo que aparece mais do que o jogador, fala mais do que o locutor e gasta menos do que o adepto"...

O presidente benfiquista tinha estado muito mal logo após a derrota em Braga que ditou o afastamento da final da Liga Europa. Não tanto pelo que disse ("Deixem-me reflectir e segunda-feira irei falar a todos os benfiquistas"), antes pelo que permitiu que fosse inferido do seu ar soturno e das suas meias-palavras. Uma boa parte dos adeptos e dos próprios analistas entendeu-nas como a antecâmara do despedimento do treinador. E para isso contribuíram ainda certas notícias entretanto divulgadas pela comunicação social, algumas das quais dando conta da existência de vários responsáveis dentro do clube que defendiam a saída do treinador.

É possível que Vieira se tenha aproveitado, mesmo que por omissão, deste cenário algo instável, em que se misturavam especulações e meias-verdades, para criar um quadro ainda mais favorável à sua intervenção, que teve tanto de pragmática e incisiva como de genericamente apaziguadora.

Comecemos pelo principal. Vieira assumiu que "despedir Jorge Jesus seria uma má decisão", utilizando como principais argumentos a qualidade e a capacidade de trabalho do próprio técnico ("Tem grandes virtudes, os seus próprios defeitos, mas é um trabalhador nato"), bem como a necessidade de "ter memória" e de não continuar a transformar o Benfica "num cemitério de treinadores". Ele, que já uma vez assumiu ter sido o despedimento de Fernando Santos o principal erro da sua presidência, sabe do que está a falar. Mais do que isso, tem toda a razão. Porque despedir Jesus seria prescindir de um treinador competente e trabalhador (como, de resto, foi reconhecido recentemente por André Villas-Boas, Domingos Paciência e Paulo Bento), mesmo que com debilidades evidentes na área da comunicação e talvez também da gestão dos humores no balneário. Prescindir dele seria deitar ao lixo o muito que de bom, apesar de tudo, foi feito nos últimos dois anos. Isto, mesmo sem considerar a incongruência que seria gastar uma fortuna (Jesus tem uma cláusula de rescisão de 7,5 milhões de euros) para despedir um treinador a quem, em Agosto passado, se dobrou o ordenado e se passou a pagar mais de um milhão de euros (o valor mais elevado que algum técnico cobrou no clube) para que ele não cumprisse a ameaça de se mudar para o Dragão.

Independentemente do voto de confiança no treinador (o quarto em apenas seis meses, depois da goleada, por 5-0, no Dragão, do desaire no estádio do Hapoel e do conjunto de más prestações na Champions), Vieira fez questão de mostrar o cartão amarelo a Jorge Jesus. "Assumirá as culpas que tiver que assumir - eu próprio também cometi erros", disse, a certa altura, Vieira, que acrescentou não poder repetir-se "o que se passou em Braga", onde, na sua opinião, o Benfica "deveria ter feito o trabalho de outra maneira".

Mas a autocrítica foi ainda mais abrangente quando reconheceu ter o Benfica pago bem caro o facto de ter passado "demasiado tempo a festejar" o campeonato da época passada, quando assumiu que o clube não se "preparou convenientemente" para a Supertaça, com todas a implicações futuras que daí decorreram, ou quando reconheceu terem "sido criadas demasiadas expectativas" num plantel "insuficiente" e que "não era o ideal". Chegou, inclusive, ao pormenor de referir a falta de alternativas credíveis a Salvio e a Gaitán (e podia ter acrescentado outros, como Maxi Pereira, enquanto noutras posições há soluções em excesso), uma referência de cariz técnico que deve ter deixado Jesus algo constrangido. Porque, acrescentamos nós, foi ele que escolheu o plantel e porque foi ele que decidiu quase não rodar a equipa durante praticamente toda a época, o que desgastou demasiado os titulares e não deu ritmo suficiente a algumas das alternativas mais credíveis.

Normalmente, este nível de discussão mais técnica não costuma sair do gabinete presidencial (onde Jesus terá tido uma reunião três dias antes da entrevista), o que denuncia e confirma a costumeira tentativa de Vieira de sacudir alguma da água do seu capote. Mas nem por isso o presidente benfiquista deixa de ter razão no diagnóstico de alguns problemas que há muito saltavam à vista. Porque não foi por acaso que o Benfica perdeu a Liga, a Taça de Portugal e a Liga Europa em pouco mais de dois meses. Porque tem de haver algo que explique os 17 jogos consecutivos que já leva a sofrer golos (com o pormenor de 17 dos 57 golos consentidos terem resultado de lances aéreos, o que não abona nada a defesa zonal que Jesus disse um dia ter inventado...). Porque perdeu quatro dos seis jogos na Liga dos Campeões, salvando-se por muito pouco de nem sequer baixar à Liga Europa. E porque o Benfica já sofreu 14 derrotas (na época passada ficou-se pelas seis), o que iguala o infeliz recorde de 1996/97, numa época em que teve três treinadores (Paulo Autuori, Mário Wilson e Manuel José).

Ou seja, o presidente do Benfica acabou, mesmo que tardiamente, por fazer o essencial do diagnóstico que já tinha sido feito pela crítica mais atenta e independente. O que só vem provar o quanto foi errada a estratégia de tentar explicar o insucesso com a demonização da arbitragem (sem deixar de relevar a importância dos seus erros, Vieira disse não acreditar na sua premeditação) e do principal rival. No seu mea culpa, só faltou a Vieira assumir o quanto foi errado aquele comunicado em que, entre vários disparates, se pedia aos adeptos benfiquistas para não se deslocarem aos campos adversários e se falava na possibilidade de o clube não disputar a Taça da Liga, a única prova que acabou por ser ganha.

Em vez disso, Vieira preferiu defender a necessidade de não se prometer títulos (o que parece atinado num clube que só venceu três nas últimas duas décadas), antes a ambição de lutar por eles. Para o tentar, disse, "o grau de exigência vai aumentar" e o Benfica irá reforçar-se "no mercado dos grandes jogadores". Uma promessa que carece de confirmação, até porque boa parte dos oito atletas que já estarão contratados (André Almeida, Leo, Wass, Bruno César, Nolito, Mora, Matic e Nuno Coelho) até podem ser bons (e alguns são), mas estão longe de ser cabeças de cartaz. Há ainda que ter em conta o sucesso ou não das vendas de alguns jogadores que parecem estar no mercado, sendo os casos mais evidentes os de Fábio Coentrão e Cardozo.

Mas a frase mais mal explicada (e merecedora de outro contraditório) de Vieira foi quando garantiu estar disposto a passar a "delegar muito menos". Mas em quem é que ele andou a delegar até agora, se Rui Costa, o administrador para o futebol, pareceu sempre andar a saber das novidades em segunda mão ou até pelos jornais? Faz algum sentido passar-se a ideia de que o sector pode ter mais responsáveis com poder (os jornais referem Humberto Coelho e até José Couceiro) se aquele que devia funcionar como braço direito do presidente parece uma carta fora do baralho? bprata@publico.pt

Sugerir correcção