Quem é Kukas?

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Anel Pedro Cunha

Último mês da exposição Kukas - Uma Nuvem Que Desaba em Chuva no Mude, em Lisboa. A pioneira do design de joalharia de autor em Portugal continua, ao fim de 50 anos de carreira, "habitada por formas". Imperdoável não a conhecer.

Risco. O gravador que regista a conversa com Kukas - aliás, Maria da Conceição de Moura Borges - salta, é apertado, vira e revira-se nas mãos da joalheira artista. Tudo pode parar ou desaparecer. Mas não. Do momento fica apenas o ruído, o restolhar das suas mãos, que encontram, no rectângulo e nas esferas que desenham o aparelho, formas que podiam ser jóias.

A conversa é pontuada pelo gesticular aéreo, acompanhando as frases com geometrias que traça, invisíveis, sobre a mesa. Kukas é liminar: "Senti-me sempre habitada por formas. Estou sempre a ver formas" - e é aqui que um gravador pode inspirar um brinco, um anel. "Não vejo nada que não pense em recriar."

São 165 peças de 76 coleccionadores, sobretudo jóias mas também jarras e outros objectos decorativos que enchem a sala dos cofres do Museu do Design e da Moda (Mude), antigo Banco Ultramarino, numa feliz conjugação de espaço expositivo e peças por Mariano Piçarra. Uma oportunidade não só de continuar a mostrar históricos do design português no Mude, mas também de apresentar um nome que, para um punhado de gerações, não é conhecido.

E Kukas, ali sentada à entrada da sala dos cofres do Mude, é uma história em si. Órfã desde cedo, viveu com três tias de grande actividade cultural. À medida que ia escolhendo o seu percurso - sempre gostou de trabalhos manuais -, ia-se cruzando com outros futuros protagonistas da cena cultural portuguesa. Vendeu as suas cerâmicas na loja da pintora Menez, pintou tecidos para a Casa Sabóia, no Chiado, esteve em Paris a estudar decoração e a inspirar-se com os amigos Lourdes Castro, René Bertholo, João Vieira ou José Escada. Esteve na Bienal de Arte de São Paulo e expôs no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (tudo em 1977) e na Europália (1991). A Made In, de José Pedro Croft, Cristina Ataíde, António Campos Rosado e João Taborda, que promovia a escultura e design de mármore, faz vários componentes em pedra para as suas jóias.

E Maria Helena Vieira da Silva olhava para o seu anel feito por Kukas todos os dias, como lhe contou no dia dos seus 80 anos, por já não o poder usar pela deformação das mãos.

Jóias do novo-riquismo

Kukas e Alberto Gordillo começaram a expor as suas jóias no circuito das galerias de arte na década de 1960 em Lisboa, dando origem a uma contaminação essencial para a história da joalharia portuguesa e operando "um corte epistemológico com a concepção tradicional da joalharia", como escreve Bárbara Coutinho, directora do Mude, no catálogo da exposição.

Depois, há a história das peças. As escolha dos materiais e das formas distinguiu a Kukas claramente - "seixos, fósseis e formas que remetiam para uma arqueologia profunda", evocando "uma joalharia quase arqueológica", explica a curadora, artista e directora do departamento de joalheria da Ar.Co Cristina Filipe. "Este era o modo de se libertar de todos os clichés" da época. Que clichés? Kukas não hesita: "A joalharia estava numa onda de novo-riquismo, era o casaco de vison e o colar de pérolas. A ideia de imitação e a da aparente riqueza, com muitas pedras de todas as cores mas com ausência total de design."

Cristina Filipe, que Kukas apelidou de sua "Poirot" pela investigação histórica que acompanhou a exposição, não tem dúvidas sobre a presença do design no trabalho de Kukas. "As formas que encontrava para traduzir as ideias que a assolavam compulsivamente" eram "o resultado de uma depuração formal, de um rigor e atenção muito próprios das preocupações base do design" desde o início da sua carreira. Afinal, design, termo pouco conhecido e de uso restrito na primeira metade do século XX, não era palavrão para Kukas. "Quem falava em design [na época] era o Sena da Silva, o António Garcia, o Daciano Costa e mais meia dúzia de pessoas ligadas à arte e à arquitectura", lembra a artista.

Na época, quis romper com o establishment, como brinca, queria situar-se na contemporaneidade, fazer jóias do seu tempo para as pessoas do seu tempo. "Senti muito a influência dos nórdicos", cujo trabalho e estímulo encontrou em Paris.

Pausadamente, com um anel e brincos de sua autoria escondidos entre os cabelos, vai desfiando as suas crenças. "O horário é uma escravidão. Quando estamos à beira de uma descoberta, corta para a hora de almoço e perde-se a dinâmica daquele tempo. É como o pôr do Sol, daí a um bocadinho já não lá está."

E, quando olha para a exposição, encontra ali histórias suas ou da vida dos coleccionadores devotos (as imagens de oito deles, de Maria João Seixas a Ana Hatherly, passando por Bartolomeu Costa Cabral, estão no Mude), de quem se apropriou delas? "Encontro histórias minhas porque as situo numa época da minha vida. Podemos estar mais ligados afectivamente às pessoas para quem as fizemos." "Há pessoas que me diziam que as minhas peças eram elementos desinibidores em ambientes em que estavam menos à vontade ou algo hostis, porque se desencadeava sempre uma conversa sobre elas", sorri.

A sua escola é também uma de valores diferentes. Numa altura de bling bling retrospectivo da joalharia, Kukas fazia peças pelo valor artístico (foi "a primeira artista a expressar-se plasticamente através de jóias" em Portugal, situa Cristina Filipe). "Não desprezo o valor material, gosto imenso de platina, por exemplo, de ouro branco, mas nunca fiz concessões e optei pelo valor artístico. Sou a antigestora de mim própria."

A ideia de joalharia de autor sempre lhe foi evidente? "Achei sempre que queria que as peças tivessem um cunho de individualidade e que pudessem ser, como hoje, reconhecidas. Conseguir transferir um cunho da nossa criatividade é importante como forma de identificação no meio da... globalização", diz, com contragosto na última palavra.

Por fazer, ficou uma escola. "A Kukas reeducou o uso e o olhar sobre a joalharia. Criou uma legião de coleccionadores das suas jóias", "um grupo vasto e abrangente [que] alimentou e alimenta ainda o culto das jóias de Kukas ao longo de gerações", vinca Cristina Filipe. Pelo facto de não ter aprendido joalharia, não a ensinou - a formação de escolas após uma geração espontânea de valores como Kukas ou Gordillo é comum. Mas só em 1978 abre o primeiro curso de joalharia em Portugal, na Ar.Co. Ainda assim, ela "reeducou o olhar dos ourives que lhe realizavam as peças", remata a perita.

Duas lojas próprias e 50 anos de trabalho depois, é-lhe difícil escolher peças favoritas. Mas lá menciona o colar da nuvem que desaba em chuva que dá nome à exposição (e que Cristina Filipe dá como exemplo da capacidade da criadora de "poetizar gestos e formas do quotidianos"), ou o anel que fez para Amália Rodrigues. Hoje, resta-lhe o sonho: "O meu ideal agora era encontrar um mecenas que me financiasse uma exposição de homenagem à pintura e à arquitectura, as artes que mais admiro. São aquelas que me causam a maior da emoção estética." O seu principal constrangimento sempre foi o financeiro. Continua a fazer peças por encomenda a partir da sua casa junto ao Castelo de São Jorge e a preencher a sua "base de dados - maquetes de coisas que vou pensando no dia-a-dia, mesmo sem possibilidade de concretização, o que é uma frustração". E as suas pedras, os cristais, o quartzo, cuja transparência sempre apreciou. "De vez em quando, faço-lhes uma visita à gaveta."

joana.cardoso@publico.pt

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