Vida com vista para escada de incêndio

Acabaram-se os alpendres, já quase só há escadas de incêndio. É num mundo de vencedores e derrotados, de horizonte curtíssimo e de difícil fuga que se passa Jardim Zoológico de Cristal na visão de Sandra Faleiro. Em cena no São Luiz, de 11 a 22 de Novembro.

Foto
O pano de fundo de Jardim Zoológico de Cristal, faz-se de uns anos 30 em plena Grande Depressão e em que estes Estados Unidos viviam banhados em jazz, álcool, salões de dança, bares, cinema e sexo Estelle Valente

A lua levanta-se por cima da mercearia do Garfinkel. Amanda, suspirando, senta-se e olha como se contemplasse a paisagem em terras do Mississípi com horizonte a perder de vista. E solta: “Uma escada de incêndio é uma fraca imitação de um alpendre”. O apartamento da família Wingfield, diz-nos Tennesse Williams, fica nas traseiras de um edifício encafoado num “desses vastos conglomerados de unidades de habitação com a forma de cortiços que florescem como verrugas nos centros urbanos superpovoados pela classe média-baixa”. Esta paisagem urbana era para o autor norte-americano um sintoma claro de uma parcela da sociedade “escravizada para evitar a mobilidade social e a distinção”. Os Wingfield vivem, pois, virados para um beco porque a fuga é improvável. Vivem com um horizonte atrofiado porque o futuro não é senão uma promessa de afundamento.

O pano de fundo de Jardim Zoológico de Cristal, tida como a mais autobiográfica das criações de Williams, faz-se de uns anos 30 em plena Grande Depressão e em que estes Estados Unidos, da expansão das cidades e de uma massa humana a esbracejar para não perder o pé em definitivo, viviam banhados em jazz, álcool, salões de dança, bares, cinema e sexo, um mundo de escala pequena cheio de “arco-íris breves e enganadores”, como lhes chama Tom, filho de Amanda.

Passados quase 90 anos sobre a semana negra de Outubro de 1929 em que a bolsa de Nova Iorque anunciou ao mundo o colapso financeiro e a catástrofe que se abatia sobre os indivíduos, Sandra Faleiro, encenadora desta versão que estará em palco no Teatro São Luiz, em Lisboa, entre 11 e 22 de Novembro, acredita que o presente em que vivemos tem inquietantes semelhanças com esse período. Ao observar fotografias de época de St. Louis, onde a peça de Tennesse Williams tem lugar, viu “uma miséria absoluta, pessoas esfarrapadas a dormir na rua, a formar filas para tentar o emprego do dia, para tentar comprar o pão do dia”. “É isto, é esta realidade”, comenta com o Ípsilon. “E nós estamos muito perto, mesmo muito perto, parece-me. Não vale a pena estarmos aqui a enganar.”

Tom, “um poeta empregado num armazém industrial”, conforme o descreve Williams, o narrador a quem cabe a lucidez da peça, aquele que quer romper com o buraco onde a família se vê metida – a mãe desespera por um casamento que salve a filha, a filha esconde-se do mundo consumida pela vergonha de uma deficiência física –, anestesia-se no cinema até se fartar dos filmes e anunciar a sua ruptura com aquela rotina. “As pessoas vão viver os filmes, em vez de viverem!”, queixa-se às tantas ao amigo Jim O’Connor. Jardim Zoológico de Cristal carrega essa ideia atemorizadora e asfixiante da tomada de consciência de que o direito à aventura de cada um se esgota na forma como outro, numa tela de cinema, o vive por si. A única excepção à aventura ao alcance de todos é a guerra, atira – “Desse prato todos podem comer, não é só o Clark Gable!”

“É o que vemos agora”, reforça Sandra Faleiro, “quando as pessoas já não vivem, não se questionam, chegam a casa e ligam a televisão, vão para o computador, para o tablet ou para os telemóveis, e as famílias não vivem, não há conversas. Estão a deixar de conseguir conversar porque dá muito trabalho, estão cansadas e vão acomodando, desligando.” Esta sintomatologia de alienação, que não é nova, empurra também a encenação de Faleiro para um lugar em que o tempo tem de desacelerar, tem de criar condições para que uma história seja contada e não apressada sempre pela urgência de passar à tarefa seguinte. A encenadora quer, por isso, que o público não se desligue, quer que disponha do tempo para se confrontar com as personagens e deixar que o texto germine. Mas essa batalha, admite, começou antes de mais em cima do palco. “Tive de dizer aos actores para terem calma, para não precipitarem o texto”, diz. “As pessoas têm de se adaptar a este tempo e aprender novamente a ouvir.”

Vencer na vida
Essa distensão do tempo é uma das conquistas que Jardim Zoológico de Cristal ambiciona. E tal como as personagens da peça vivem todas numa qualquer forma de aprisionamento, há um isco de libertação arremessado para o colo do espectador. A sua prisão, argumenta Tom, é a da domesticação do homem, “por instinto um amante, um caçador, um lutador”, reduzido a animal de escritório ou armazém, com os instintos suprimidos. “Ele vai ter de sair, é a morte dele se continua ali.” “Ali”, nas palavras de Sandra Faleiro, significa tanto a própria casa, o núcleo familiar, o emprego, a cidade ou o ciclo doentio de trabalho e cinema – sinónimo de escravização e escapismo. Para a mãe Amanda, é inconcebível que o filho possa ter ambições ao nível “dos macacos e dos porcos”. Para a mãe Amanda, boas são as ambições demonstradas pelo jovem Jim O’Connor, colega de Tom no armazém mas estudante no curso nocturno de engenharia e oratória. E oratória, como se sabe, é indício indesmentível de querer ascender a um cargo executivo.

Foto
Estelle Valente

O’Connor é, portanto, o representante oficial do sonho americano, do hoje nauseabundo emblema de lapela de empreendedor, o “bom partido”, o tipo que aceita o estilo de vida imposto sem clemência e no qual tenciona prosperar. Jardim Zoológico de Cristal é, assim, atravessada pelo negrume sombrio de um mundo dividido cruelmente entre winners e losers, como se nisso houvesse uma qualquer forma de justiça. “O O’Connor é uma personagem super trágica” no entender de Sandra Faleiro, “sempre em fuga para a frente e nós adivinhamos-lhe o futuro: vai continuar a trabalhar no armazém, casar-se com a outra namorada, ter montes de filhos, trabalhar muitas horas para conseguir sobreviver, aquilo que acontece à maior parte das pessoas.”

Este figurino previamente preenchido do que significa vencer na vida pode, na verdade, equivaler a ser vergado pela vida. “Tudo isto tem que ver também com o capitalismo e com a velocidade”, reforça Faleiro. “Mas já sinto isso também aqui no nosso dia-a-dia, que é violento, agressivo. Estamos numa época terrível, destrutiva do ser humano. O humanismo e a filosofia já quase não existem. Não tenho muita esperança. Toda a gente hoje tem a espada sobre a cabeça, tal como esta família.” É em contar histórias, como esta, que Sandra Faleiro deposita essa pouca esperança de que, afinal, o gume da espada possa, no derradeiro segundo, tomar outro caminho que não o do pescoço.

O Jardim Zoológico de Cristal from Teatro São Luiz on Vimeo.

Sugerir correcção
Comentar