Viagens pela música mariana em São Vicente de Fora

O repertório da Idade Média tem sido bastante negligenciado pela maior parte dos programadores em Portugal.

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A edição de 2014 do ciclo de concertos no órgão histórico da Igreja de São Vicente de Fora, organizado pela editora Althum e pelo Patriarcado de Lisboa, chegou ao fim no passado sábado com um programa especial.

Sob o título Ave Mater – o canto Mariano desde a Idade Média, o organista João Vaz (director artístico da iniciativa) e o Mediae Vox Ensemble, dirigido por Filipa Taipina, conceberam um percurso que combinou peças vocais e instrumentais de diferentes proveniências geográficas desde a época medieval até ao século XVII, tendo como fio condutor as tradições musicais da devoção mariana.

Numa associação livre, que privilegiou o impacto estético que requer um concerto dirigido ao público de hoje em detrimento de possíveis reconstituições de contextos litúrgicos ou históricos, foi possível escutar desde melodias gregorianas tão célebres como o hino Ave maris stella e a antífona Salve Regina até à magnífica versão polifónica Ave Mater, o Maria, de Oswald von Wolkenstein (1375-1457), que encerrou o programa, passando por páginas para órgão como a Fuga sobre o Ave maris stella, de Jean-François Dandrieu (1682-1732), o Tento sobre a Salve Regina, de Pedro de Araújo (?- ca. 1662) ou as Glosas sobre el canto llano de la Inmaculada Concepción, de Francisco Correa de Arauxo (1584-1654). A prática alternada entre o órgão e os versículos gregorianos esteve também presente, como no caso do Magnificat de Nicolas Le Bègue (1631-1702).

O repertório da Idade Média tem sido bastante negligenciado pela maior parte dos programadores em Portugal pelo que é de salientar a sua inclusão, para além do apelativo resultado sonoro obtido na maioria das peças. Individualmente, as vozes das quatro cantoras que formam o Mediae Vox Ensemble denunciam perfis diversos (no plano tímbrico e da técnica), mas em conjunto conseguem uma sonoridade bastante límpida e equilibrada, por vezes quase etérea. Várias das peças seleccionadas são de grande beleza, como é o caso de Rosa Fragans (trecho gravado pelo Ensemble La Reverdie, que parece ser o grupo de referência para as Mediae Vox) ou Hec est Mater – Tropo Benedicamus, objecto de uma expressiva interpretação.

Algumas obras foram acompanhados pela sanfona (tocada por Manon Marques), umas vezes usando um simples bordão e outras através de intervenções mais elaboradas como em Prima Cedit Femina. Para as obras finais, as quatro cantoras subiram à tribuna do órgão e no já referido Ave Mater, de Wolkenstein, além da sanfona recorreram à percussão numa versão de grande efeito, ainda que de contornos históricos improváveis pela associação de um órgão monumental do século XVIII a um conjunto de inspiração medieval.

Quanto a João Vaz, quer a solo, quer em conjunto com o grupo vocal, mostrou a sua habitual solidez técnica e conhecimento profundo do instrumento (do qual é titular), através da diversidade tímbrica na escolha de registos em interpretações que primaram pela vitalidade, clareza polifónica das diferentes vozes da textura e sensibilidade aos diversos universos estilísticos.

O concerto foi precedido pelo lançamento de um CD com obras de compositores portugueses dos séculos XVI a XIX gravadas por João Vaz no órgão de São Vicente de Fora por encomenda da revista alemã Organ – Journal für die Orgel (Schott), que o distribuiu internacionalmente e que inclui também um artigo sobre o instrumento da autoria de João Pedro d’Alvarenga.

Em 2015, comemoram-se os 250 anos deste magnífico órgão construído em 1765 por João Fontanes de Maqueira, efeméride que será assinalada com um ciclo de concertos com início a 17 de Janeiro.

 

Cristina Fernandes

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