Viagem à Lua a partir de Alcobaça

A versão de concerto da ópera Il Mondo della Luna por um conjunto de cantores de óptimo nível e pelos Músicos do Tejo, sob a direcção de Marcos Magalhães.

Mais uma vez com uma criteriosa programação concebida pelo compositor e violetista Alexandre Delgado, o Festival Cistermúsica de Alcobça terminou no domingo com a comemoração dos 300 anos do nascimento de Pedro António Avondano (1714-1782). A efeméride foi assinalada com a versão de concerto da ópera Il Mondo della Luna por um conjunto de cantores de óptimo nível e pelos Músicos do Tejo, sob a direcção de Marcos Magalhães.

Figura de vulto da vida musical portuguesa setecentista, com considerável projecção europeia, o violinista e compositor Pedro António Avondano tem sido nos últimos tempos objecto de crescente atenção no domínio da investigação e da interpretação, com destaque para a apresentação recente das suas belíssimas oratórias La Morte d’Abel e Gioas, Re di Giuda pelo Divino Sospiro. Estreada em 1765, no Teatro Real de Salvaterra, Il Mondo della Luna baseia-se no famoso libreto de Goldoni que também inspirou compositores como Galuppi, Piccini, Haydn e Paisiello. Trata-se de uma das principais obras dramáticas de Avondano, sendo reveladora da sua versatilidade artística e conhecimento das tendências da música europeia que fazem a ponte entre o Barroco e o Classicismo, incluindo a flexibilidade dramática que leva ao uso de uma maior quantidade de números de conjunto na ópera cómica.   

A edição moderna da partitura foi realizada em 1995 por Jorge Matta, mas a obra tem tido escassas apresentações. A sua qualidade e o imaginativo potencial libreto — que nos conta como Ecclittico, um falso astrónomo, consegue convencer o velho Buona Fede de que foi transportado para o mundo lunar e assim obter o seu aval para o casamento das suas filhas e da sua criada — mereciam uma encenação e figurinos  à altura, bem como a possibilidade da reposição e circulação do espectáculo. No entanto, as limitações orçamentais, fizeram com o Cistermúsica optasse apenas pela versão de concerto. Apesar das suas quase três horas de duração, esta despertou grande entusiasmo do público, graças à vivacidade do texto e da música e à contagiante teatralidade dos cantores, tanto nos textos falados como cantados. Sucede que os recitativos originais foram substituídos por texto falado em português, traduzido com ritmo e graça por Alexandre Delgado, o que permitiu agilizar a duração e o tempo de preparação. Embora eficaz, a opção é discutível até porque Avondano era também um compositor hábil e subtil  no plano dos recitativos e hoje em dia contamos com vários cantores que dominam esta difícil arte com eloquência, incluindo boa parte do elenco de Alcobaça.

As personagens de Goldoni/Avondano têm grande variedade de carácter no plano musical e psicológico, o que foi muito bem transmitido pelos cantores. No papel do falso astrónomo Ecclitico e pretendente de Clarisse, o tenor Fernando Guimarães mostrou o seu habitual bom gosto musical e apuro técnico, sem ceder a exageros nos traços da personagem; Luís Rodrigues fez uma Buona Fede de grande comicidade e revelou uma crescente familiaridade com o repertório setecentista; João Fernandes colocou a sua poderosa voz de baixo e notável talento dramático ao serviço de um carismático Cecco; e no papel mais pequeno de Ernesto, Carlos Guilherme, foi exemplar. Em relação ao elenco feminino, o papel mais sério no plano vocal de Flaminia, contou com o virtuosismo e agilidade de Sandra Medeiros; Sara Braga Simões foi muito expressiva como Clarisse, a outra filha de Buona Fede, de carácter mais ousado e irreverente; e Carla Simões assumiu com energia e graça o papel da criada Lisetta, tirando partido das cambiantes de colorido do seu timbre numa interpretação rica em contrastes.

Se no plano vocal, o desempenho foi de elevado nível, a componente instrumental revelou várias vezes uma certa falta de coesão do trabalho de conjunto e de rigor nos detalhes, não obstante a direcção envolvente de Marcos Magalhães. São aspectos que decerto serão colmatados com mais rodagem e amadurecimento da obra. Os Músicos do Tejo têm inúmeras provas de qualidade dadas em espectáculos músico-teatrais pelo que a excelência do “mundo da lua” será, neste caso, de alcance bem terreno se houver oportunidades futuras.

Sugerir correcção
Comentar