Vassoura nova é que varre

Os actores de A Colectividade são brilhantes, impecáveis, certeiros no alvo.

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Os espectadores são transformados, por uma tarde ou serão, em sócios desta fabulosa agremiação DR

A Colectividade começa no átrio do espaço do Teatro Meridional do Poço do Bispo, onde o público é convidado a participar num prólogo composto a partir de diálogos dos filmes A Canção de Lisboa (1933), de Cottineli Telmo, O Pai Tirano (1941), de António Lopes Ribeiro, O Pátio das Cantigas (1942), de Francisco Ribeiro, e O Costa do Castelo (1943), de Arthur Duarte. Participar é a melhor palavra. Os espectadores são transformados, por uma tarde ou serão, em sócios desta fabulosa agremiação, aqui vindos com o fim de assistir à festa do 75.º aniversário do grupo (foi fundada em 1940, precisamente). Para assinalar a efeméride, foi preparado um espectáculo de variedades, com números apresentados pelos sócios mais activos (os finalistas da escola de teatro ACT), que se confunde com a campanha eleitoral para a direção da Colectividade. A disputa é entre o actual presidente, o Dr. Salmoura (Rui M. Silva), e a sua esposa, mas feroz rival, a Sra Prof.ª São (Susana Madeira), secundados na organização das actividades pelos sócios Memé e Jorge Valentino (Catarina Guerreiro e Vítor Alves da Silva).

Os actores são brilhantes, impecáveis, certeiros no alvo. Depois de alguns números musicais, o espectáculo continua com uma adaptação moderna, a cargo do Grupo Cénico da Colectividade, da primeira produção apresentada pelo grupo, em 1960, Amor de Perdição, já de si adaptada a partir do argumento de António Lopes Ribeiro para o filme, por sua vez feito, claro, a partir da novela de Camilo Castelo Branco. Já daqui se vê como Natália Luiza, encenadora e dramaturga, põe em jogo a memória dos anos 40 e o próprio memorialismo, esse mais actual, dessas décadas de má memória, diga o que se diga. O propósito, amplamente conseguido, é fazer uma síntese do espírito das comédias das décadas de 30 e 40, e, ao mesmo tempo, uma alegoria do país actual, reduzido à escala de uma colectividade local, que talvez seja a mais própria. Pelo caminho, é feita uma paródia do teatro contemporâneo e dos seus tiques. A Colectividade encerra com o coro da associação a apresentar uma rapsódia que vai deixando os espectadores cada vez mais comovidos (falo por mim), à medida que vão sendo despertados do sonho do espectáculo para a vida real. Os temas vão de A Minha Alegre Casinha (de O Costa do Castelo) a Acordai, de José Gomes Ferreira e Fernando Lopes Graça, composto como resistência à ditadura e mais recentemente tornado um hino de protesto contra as políticas de austeridade em Portugal. Arrepiante.

Outro espectáculo, Entraria Nesta Sala…, de Ricardo Neves-Neves, até há pouco tempo em cartaz no Teatro Nacional D. Maria II, lavra no mesmo material de base, a saber, a memória das comédias de António Silva, Vasco Santana, Francisco Ribeiro, Beatriz Costa e muitos outros actores e autores. A tentativa é também de subverter, pelo riso, o tempo bafiento que tantas semelhanças tem com a década de 40, ao mesmo tempo que se aproveita o melhor do teatro e cinema de então. Os actores (Cristina Carvalhal, Joana Campelo, Ricardo Neves-Neves e Rui Melo) actuam maravilhosamente, reproduzindo com detalhe, mas frescura, o gesto dos originais. As tiradas são hilariantes e o despretensiosismo talvez a melhor arma contra qualquer tipo de autoridade. Mas… As alusões históricas poderiam ser mais directas, e as voltas do enredo mais contundentes. Esta farsa, de tiradas brilhantes, em que a comicidade é dirigida com precisão de relógio atómico por Sandra Faleiro, ganharia em poder de fogo. Há duas maneiras de olhar para um dado espectáculo: ver o que lá está e pensar no que não está. Nesta caso, a curiosidade não satisfeita é: porque manda Nossa Senhora de Fátima matar Hitler e não Salazar? (Fátima não o faria?)

Com o Galo de Barcelos e outros invenções da propaganda do Estado Novo espalhadas pelo país de toda a forma e feitio, estes dois espectáculos são a prova de que a memória dos anos 40 é tão remota que se pode fazer o que se quiser com ela. Esperemos.

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