Vanessa não gosta de brinquedos de meninas. E depois?

Vanessa Vai à Luta sobe esta quinta-feira ao palco do Teatro da Trindade, em Lisboa, para nos pôr a falar da formatação de género e dos estereótipos sociais. Com encenação de António Pires.

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Como qualquer outra criança da sua idade, Vanessa foi apresentada aos papéis tradicionais do homem e da mulher como a norma de vida em sociedade. As meninas devem gostar de cor-de-rosa, envergar vestidos cor-de-rosa e brincar com bonecas e utensílios de limpeza a fingir – também cor-de-rosa, claro. Mas embora os pais tivessem todo o gosto em presenteá-la com uma Barbie ou uma máquina registadora de fazer de conta, o que ela queria mesmo era uma metralhadora. Vanessa Vai à Luta é a nova encenação de António Pires e está em cena a partir desta quinta-feira, às 21h30, no Teatro da Trindade, em Lisboa. Com texto de Luísa Costa Gomes, o espectáculo tem por base o livro da sua autoria inserido no Plano Nacional de Leitura. “A peça aborda a maneira como as pessoas são formatadas primeiro com os brinquedos e depois com os sonhos daquilo que poderão vir a ser futuramente”, conta o encenador.

À primeira vista, esta poderia ser apenas a missão inocente de uma menina de seis anos com o objectivo de conseguir um brinquedo igual ao do irmão, mas o inconformismo de Vanessa (Carolina Campanela) toca questões estruturantes da nossa sociedade. É que a protagonista não entende o porquê de ter de brincar com bonecas em vez de figuras como Action Man ou os heróis de Dragon Ball, e tão pouco percebe a insistência da mãe em dirigir-se apenas à secção de raparigas da loja de brinquedos. “Há brinquedos para menino e brinquedos para menina”, afirma a dada altura a mãe, papel interpretado por Cátia Nunes.

A imaginação de Vanessa não tem limite nem rótulo, mas os pais querem acreditar que esta é uma fase passageira que findará assim que a filha “se torne uma mulherzinha e comece a interessar-se por rapazes”. Esse processo passa também por chamá-la a ajudar a mãe nas tarefas domésticas enquanto o irmão Rodrigo (João Veloso) fica no sofá a ver televisão. “Se a biologia é destino, é importante para a Vanessa perceber como pode controlar esse destino”, escreve Luísa Costa Gomes na folha de sala. Há, ainda, uma cena em que a Fada Marina (Julie Sergeant) aparece determinada a proporcionar-lhe a ida a um baile de encantar com direito a carruagem e vestido, mas Vanessa não se coíbe de responder que "nem todas as meninas querem ir ao baile".

As crianças vão entender

Publicado pela primeira vez em 1999, Vanessa vai à Luta acusa a passagem do tempo, referindo, por exemplo, elementos tornados obsoletos como o escudo e a telefonia. A autora chegou a considerar actualizar o texto num primeiro momento da encenação, mas fazê-lo alteraria por completo todo o conceito da peça. “Hoje nada disto existe por causa dos telemóveis e da realidade virtual a que os miúdos estão habituados”, explica António Pires. O encenador conta que a digitalização que serve hoje o entretenimento das crianças fez com que “a metralhadora fosse o adereço mais difícil de encontrar, porque hoje em dia não se fazem metralhadoras de brincar”.

A temática original do espectáculo continua tão válida e actual como há cerca de 20 anos, uma vez que os padrões socioculturais, a identidade de género, o feminismo e a misoginia estão diariamente nas bocas do mundo. É nesse sentido que o espectáculo pretende impulsionar uma discussão saudável entre pais e filhos. “O texto não é fechado e não tem soluções, por isso dá espaço para que o público depois discuta o tema”, diz António Pires.

O encenador reconhece que o maior desafio inerente à peça foi “fazer um espectáculo infantil que ponha as pessoas realmente a pensar, mesmo sendo leve”. A trama está classificada para maiores de seis anos, mas a linguagem é perspicaz e inteligente sem ser elementar. "Quando penso em espectáculos para a infância, não quero que sejam ‘infantilões’ e baseados na ideia de que as crianças não vão entender”, esclarece.

Vanessa vai à Luta é uma co-produção do Teatro da Trindade e do Teatro do Bairro e tem a colaboração da associação Welcome People + Arts, que realizará posteriormente um workshop em algumas escolas para, com base nas personagens da história, trabalhar os temas do espectáculo com as crianças. A peça estará em cena até domingo, regressando ao palco entre 11 de Fevereiro e 1 de Abril, aos sábados. Deverá, ainda, circular por alguns cine-teatros do país, em datas a anunciar. Por agora, resta-nos tomar como exemplo a rebeldia de espírito de Vanessa – afinal, temos o poder de escolher quem queremos ser.

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