Valério Romão, atirador com alvo

Uma escrita que lembra rapidez e pontaria: ninguém escreve como Valério Romão. Acaba de publicar uma peça de teatro e um livro de contos.

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Afirmar que Valério Romão tomou de assalto a literatura portuguesa quase não chega a ser uma força de expressão.

O seu surgimento, com Autismo (Abysmo, 2012), representou, efectivamente, um assalto. À placidez e à previsibilidade, sem dúvida que o foi. Com aquele romance de estreia e com o que se lhe seguiu, O da Joana (Abysmo, 2013), mas também com os contos de Facas (Companhia das Ilhas, 2013), impunha-se entre nós uma força plenamente própria. Uma escrita que lembra rapidez e pontaria, que se implanta com o rigor de um sistema. Uma obra criadora não só de um universo ficcional idiossincrático, e de um estilo que lhe produz um contraforte assinalável, de marca solitária, mas, sobretudo, toda uma força que é geral. E que se estende por uma diversidade de veios: sejam eles as temáticas, a posição do autor perante a obra que vai construindo, ou o facto de, pura e simplesmente, ninguém escrever como Valério Romão.

Caso acreditemos que é importante um autor ter a sua ideia para o que é a literatura na língua em que se exprime, então Valério Romão é alguém a acompanhar com atenção. Poderíamos defini-lo, nas suas próprias palavras, como um “atirador-furtivo”, mas, conforme pode perceber-se da leitura da sua obra, e do seu testemunho sobre ela, este é um atirador “com alvo”. Mais do que vocacionado para erigir um “castelo literário”, diz-se interessado em “inventar mundos”, pelo que a sua escrita se teria apropriado, segundo uma analogia sua, mais das metodologias de uma “arqueologia” do que de uma “arquitectura”. Podemos perceber por que razão assim é. Para este autor, as construções ficcionais não são sobretudo proezas formais, ou ostentosas elaborações do artifício romanesco. Importam-lhe muito mais os “pormenores escondidos” e a vindicação clara de um postulado como “o óbvio não tem valor facial”. Ao longo desta conversa tornar-se-á aparente que a sua formação em Filosofia não é alheia a esse desejo de se posicionar para lá do imediato e dos sentidos mais evidentes. No trânsito entre as duas vertentes, a filosofia valeu ao autor a capacidade de “perceber melhor como evitar o óbvio”, ou pelo menos “como desmontá-lo”.

O que deu a filosofia ao escritor?

Um aspecto que orienta a produção de Valério é o princípio da intersubjectividade, instrumento teórico que o autor foi buscar à filosofia, em particular a autores como Edmund Husserl. É tendo em conta o horizonte daquela noção que Valério Romão destaca “o extremar de tensões” e o material, declaradamente proveitoso para os fins da arte, que surge quando “empurramos alguém até ao limite”. É nesse gume afiado que surge aquilo que apelida de “ética prática”, arma que só passa a fazer sentido no confronto, na vertigem do instante. É impossível não pensarmos nas páginas agrestes e tensas de Autismo e O da Joana. Ou na superfície cortante de Facas. Nesses seres que levam às fronteiras do concebível a convivência e o confronto, dimensões que se irmanam e se esganam, que se escalpelizam nesta escrita. Mas afinal o que deu a filosofia a este escritor? Eis o que poderia perguntar-se de forma algo simplista. “Nada de quantificável ou transparente”, como se entenderá, mas decerto uma metodologia, uma ideia de sistema, uma disciplina, enfim. O curso que Valério Romão completou e que, segundo diz, o mudou, ter-lhe-á fornecido “mais competências do que um curso de literatura”. Porque retirou daquela outra formação académica alguma coisa que se lhe revela “mais incisiva e sistemática”. Lendo as páginas ficcionais que tem publicado, é possível constatar que essa “rede conceptual acrescida” lhe proporcionou ferramentas úteis, que lhe terão dado o rigor com que aborda temas resvaladiços como a família e a doença. A sua capacidade de lidar com eles sem se deixar alucinar pela toxicidade temática daquelas opções poderá bem ser a razão pela qual afirma: “A filosofia serve-me para a literatura.”

À volta da estranheza

Acaba de lançar dois livros, quase em simultâneo: uma peça teatral, A Mala (Edições Guilhotina), e o livro de contos Da Família (Abysmo). À semelhança, de resto, do que aconteceu em 2013, ano em que publicou O da Joana e Facas. Não se trata de uma estreia do autor na dramaturgia. Escreveu já as peças Octólogo (uma colectiva levada à cena no TUP, em 2003) e Posse (Teatro da Trindade, 2013). Esta sua nova edição, A Mala, corresponde à peça encenada em 2007 no CCB/Boxnova. Desde o início, esta não foi uma obra “pensada a solo”, mas com outrem e para outrem. No caso, a bailarina e performer Beatriz Cantinho. Como sucedia em Autismo, em que a condição patente no título criava um quadro clínico tornado axial para a construção e alcance do romance, a peça agora editada convoca um conjunto de situações de doença que faz suas. Uma delas, chamada hemispatial neglect syndrome, determina um enfraquecimento da capacidade de percepcionar um dos lados do campo de visão. Em concomitância com esse quadro clínico, Beatriz Cantinho, quando da sua representação, olhava apenas para metade do seu público. Algo que, como afiança Romão, não é fácil transpor para a escrita. Daí que goste de frisar a importância do lado de espectáculo que a peça teve, e que se espera possa ser resgatado na sua transposição para o texto agora publicado. Esta descrição de sintomas, presente em A Mala, não pretendia ser exaustiva, mas apresentar-se “de forma mitigada em palco”, e naturalmente no texto. A utilização da doença relaciona-se com a vontade de organizar qualquer coisa “à volta da estranheza, a estranheza do humano”, de modo a encontrar a expressão de uma espécie de “natureza-morta da condição a expor”. Como sucede na sua ficção, são os limites que importam. Pois é neles que tudo se decide.

Quase num parêntese a estas considerações, revelou-nos que a sua escrita se estende ainda à poesia, e que há uma produção apreciável nesse sentido. Ainda por editar, poderá um dia vir a ser divulgada. Essa área da sua escrita, de que apenas poderemos captar vislumbres, terá preferência o poema longo, com o pendor sistemático que reconhecemos na prosa do autor, e em que se pode intuir, ou adivinhar, maior narratividade e menor inclinação lírica. Para já, deixa-nos com as suas considerações sobre esta forma de expressão literária. Fala de um “caminho periclitante”, no que toca à poesia portuguesa, embora reconheça a existência de nomes que vale a pena acompanhar e cujas obras importa reconhecer, sem deixar de frisar o desequilíbrio entre “técnica e vida”, do qual decorreria uma supremacia do primeira em relação à segunda variável. Uma situação que, aliás, não deixaria de se poder aplicar à prosa. Distingue a função crucial das pequenas editoras, bem como a circunstância de os avanços tecnológicos terem deixado o seu traço na forma de conceber a edição. Tudo isto sem deixar de reconhecer o surgimento de movimentos marginais que recuperam técnicas e processos anteriores, alguns dos quais quase esquecidos, a que emprestam uma dinâmica nova.

Assim como podemos detectar alguma proximidade entre a peça agora editada e o romance anteriormente publicado, Valério Romão recusa uma diferença substantiva entre romance e conto. Trata-se apenas de uma questão de modular “compasso, estrutura, cadência”. Em Da Família, considera, existe um prolongamento temático em relação a anteriores registos. Como nos tratados filosóficos, este livro de contos define, através da entrada “da”, o assunto de que vai ocupar-se (à semelhança do De Anima aristotélico, por exemplo). Essa consideração não é indiferente, porque o tema que este novo conjunto de contos explora é um elo forte que une as partes do livro, formando um todo coeso. Se em Facas esse objecto se tornava a palavra-chave e o núcleo reactivo que impelia a combustão desse primeiro livro de contos, agora é a família que confere congruência a este novo conjunto contístico. Distribuídos segundo uma lógica de “meio por meio”, entre textos inéditos e os que tiveram divulgação prévia em revistas e na Internet, os contos de Da Família obedeceram a uma prática que é comum à concepção de escrita de Romão. Ela poderia ser resumida numa palavra: “cortar”. Em número e na extensão de cada conto. De um corpo de duas dezenas de contos, o autor chegou a metade. Uma operação semelhante havia sido levada a cabo em Facas, mas aí a disparidade numérica daquele núcleo (originalmente escrito há mais de 10 anos) é ainda mais notória, visto que nele as excisões, feitas conto a conto, foram ainda mais expressivas. Que melhor terreno do que a família, perguntará Valério Romão no decurso desta conversa, para testar os limites do ser humano, para observar e registar as modalidades do seu comportamento? Daquilo que já pudemos conhecer da escrita do autor, poucos haverá. Se algum.

Em relação à anunciada conclusão da sua trilogia das Paternidades Falhadas, iniciada com Autismo e prolongada em O da Joana, tudo indica que se chamará Alzheimer. Apenas iniciado, e interrompido algures “na página 27”, o novo romance não deverá trilhar o caminho mais percorrido. Como defende, “o óbvio destrói a arte”. Pelo que lhe interessará contrariar toda a maquinaria imagética e associativa que se agrega àquela doença. Interessa-lhe arriscar mais, sem temer incursões que o possam, eventualmente, levar ao “realismo mágico”, ou até mesmo às fronteiras do “surrealismo”. Mas é ainda cedo. “Sei o que ele não é”, diz-nos, “mas não o que é”.

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